sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A ausência de identidade da Pessoa em Situação de Rua


Foto: Adriana do Amaral

 O PROCESSO DE ENCOBRIMENTO DA POPULAÇÃO EM     VULNERABILIDADE SOCIAL EXTREMA DURANTE A   PANDEMIA DA COVID-19 

 Resumo

 Reconhecer-se implica em ser reconhecido? 

 Este artigo discursa sobre a perda de identidade, a partir do   fenômeno que levou milhares de pessoas a viverem em situação de   rua durante a pandemia da Covid-19 e agravou a realidade daqueles   que já não tinham teto, afetando pessoas de identidades, etnias e   nacionalidades diversas.

 Buscamos com base nos conceitos de Encobrimento do Outro,   Identidade e Aporofobia, sob as óticas de Dussel, Bauman e Cortina,  a compreensão de como a população, em decorrência do deslocamento interno forçado, foram invisibilizados, como pessoas humanas, ao viverem à margem do ideal social pregado pelo "mito da modernidade". 

Como a ausência do lugar  de fala os fez ser vitimizados e/ou culpabilizados pelos diferentes olhares que aqui tratamos como aporogóbicos. 

Por meio da revisão de literatura, construímos uma leitura dialógica, sem buscar respostas, mas caminhos ao questionarmos valores que descartam os Direitos Humanos Universais.

Palavras-chave

Identidade. Aporofobia. Encobrimento do Outro. Mito da Modernidade. Pessoa em Situação de Rua.


Introdução

                                                                                                                                             

Ao longo da História, a sociedade sempre conviveu com a realidade da população em situação de rua, que é formada por perfis diversos e costuma concentrar migrantes que não conseguiram trabalho, pessoas com deficiência, vítimas de acidentes, pacientes com problemas mentais ou em situação de droga, egressos do sistema carcerário e/ou vítimas dos abusos como violência doméstica, moral e sexual, além de desagregados da sociedade tradicional. Ao longo dos anos 2020 e 2021, até a finalização deste artigo, a pandemia da Covid-19 fez aumentar o número de brasileiros sobrevivendo em condições extremas da vulnerabilidade social: os sem-teto.

 Um fenômeno que precede à crise gerada pela pandemia, já que na capital paulista eram mais de 24 mil pessoas em 2019, de acordo com a Pesquisa Censitária da População de Rua. O aumento dessa população, ao longo dos últimos 21 meses, também resulta da crise financeira que atingiu a economia local e mundial, com a concentração de renda e ausência de trabalho formal. Crescimento que levou a Prefeitura de São Paulo a repetir o Censo da População em Situação de Rua no final de 2021.

Estima-se que mais de 35 mil vivem sem teto e sem trabalho nesse contexto, o que alterou o perfil dessa população de pessoas solitárias a famílias com crianças. De acordo com o IBGE, um a cada quatro brasileiros sobrevivem à pandemia em condições de vulnerabilidade.

O agravamento dessa realidade teve início a partir de março de 2020, quando o Brasil passou a enfrentar a insegurança sanitária, o isolamento social e a fragilidade econômica, consequentes da contaminação pelo SARS-CoV-19 e suas mutações. Também, recorrentes às escolhas políticas do Estado vigente. Nesse contexto, brasileiros perderam algumas dentre as suas referências sociais, atingindo não apenas processos individuais, mas coletivos que impactaram em suas identidades. Por exemplo: crianças ficaram órfãs, adultos perderam seus familiares, amigos e colegas, trabalhadores perderam suas fontes de renda formais e informais.

Nesse período, o capitalismo, aguçado pelos parâmetros do neocapitalismo, aumentou o abismo social que tem afetado as populações carentes não apenas no Brasil como em todo o mundo. Pessoas que, em consequência da pobreza ou luto, foram excluídas dos seus lugares de pertencimento, seja na família, comunidade, trabalho e sociedade, visto que um novo processo migratório aconteceu, dessa vez dos ambientes domésticos para as ruas e calçadas, em decorrência da instabilidade econômica gerada pela pandemia.

Perguntamo-nos: como ser alguém sem possuir nada, materialmente falando, existe dentro dos padrões sociais de uma sociedade “moderna” onde o poder econômico costuma ditar as regras? Como ser reconhecido como pessoa humana, ou cidadão, sem garantias de direitos e políticas públicas não cumpridas? Como resistir ao olhar preconceituoso e discriminatório?

Para Cortina (2020), a “pobreza involuntária é um mal de que se padece por causas naturais ou sociais” e que, segundo ela, já poderia ter sido suprimida no século XXI.  Apesar de a pobreza involuntária não ser um traço de identidade, pois não se trata de uma escolha pessoal, a autora esclarece que poderia ser um processo negociado por meio do diálogo, levando-se em conta o “entorno social”.

Refletimos, ao longo deste artigo, sobre a relação entre a miséria, a perda da identidade, a ausência de diálogo e de oportunidades que perpetua a pobreza involuntária. Questionar como o apagamento social acontece envolto ao mito da modernidade e do mercado que descarta o oprimido.

Ao nos debruçarmos nesse fenômeno, ponderamos sobre o caos social que se abateu no Brasil, a partir da compreensão, principalmente, sobre o conceito de aporofobia, que é a aversão ao pobre, bem como refletimos se o coronavírus, que é a causa do distanciamento social, fomentou o isolamento de parte da sociedade brasileira, consequência de escolhas políticas e econômicas na sociedade globalizada em que vivemos.

O pobre é o “rejeitado e o descapacitado”, que incomoda porque ele gera problemas aos demais, afirma Cortina (2020). A autora inclui no contexto de aporofobia não apenas os miseráveis, mas também os migrantes e todos aqueles que resistem no cenário de abandono. “São amostras palatáveis de aparofobia, de rejeição, de aversão, temor e desprezo ao pobre, ao desemparado que, ao menos aparentemente, não pode devolver nada de bom em troca” (CORTINA, 2020, posição 234).                                              

Sem pretender encontrar soluções para reverter o caos social atual, mas tentar ao menos compreendê-lo em suas variantes, ativemo-nos na revisão de literatura para discorrer sobre o tema proposto. Apoiamo-nos no conceito de alteridade, a partir da leitura de Dussel (1993), onde o entendimento sobre a realidade do oprimido parte da filosofia da libertação, que requer encontros entre os desiguais, bem como nos atentamos ao conceito de Identidade, por meio da visão de Bauman. E como ambos têm visões diferentes sobre o “mito da modernidade”, respectivamente sob o olhar para a América Latina e Europa, concordamos tratar-se de um processo que não deu certo, pois é limitado a poucos e exclui a maior parte das benesses do mundo ideal prometido.

Ao longo desse estudo, pensamos como esse fenômeno se manifesta na cidade mais rica do país ─ São Paulo ─ pensando brevemente sobre os conceitos de Encobrimento do Outro, Empatia e Alteridade, tentando, a partir do diálogo com Dussel (1993), trazer para os dias atuais o processo histórico da dominação e descarte social. Primeiro os exploradores avançam, depois dominam, encobrem, apagam e descartam.

Para finalizar, consideramos a questão da aporofobia, a partir dos números reais, contabilizados pelo Censo da População de Rua na capital paulista. Na sequência, buscamos entender como a identidade é um não direito ao povo da rua que, por si só, é múltiplo e diverso. Também, refletir sobre dignidade, violência e exclusão social.

             

1.1 Se um não é... todos não somos

“Ser ou não ser. Eis a questão”. A frase dita por Hamlet, personagem da peça homônima, escrita por Shakespeare, nos ajuda a refletir sobre o conceito de encobrimento do outro. Ao nos apresentar o “Não Ser”, Dussel nos instiga a pensar na pessoa excluída a partir da ótica da ética na filosofia da libertação e do princípio da alteridade. Afinal, mesmo aquele que não conhecemos e/ou reconhecemos nos transforma a partir do encontro. Pelo menos, fazendo-nos parte do mundo onde nos incluímos, mesmo indiretamente.

O autor nos leva a repensar como somos independentes e dependentes ao mesmo tempo, pois ao interagirmos com terceiros nos transformamos mutuamente. Isso a partir dos nossos encontros sociais, públicos, coletivos, privados ou íntimos. Explicando: mesmo quando as relações são assimétricas e/ou superficiais, como acontece com a maioria das pessoas que têm casa e aquelas que vivem em situação de rua, o encontro pode limitar-se a um olhar, mesmo que de repulsa, ou de aproximação através da empatia.

 

Para a ‘filosofia da libertação’, que parte da Alteridade, do ‘compelido’, do ‘excluído’ (a cultura do dominado, explorado, do concreto-histórico) trata-se de mostrar essas condições de possibilidade do diálogo, a partir da afirmação da alteridade e, ao mesmo tempo, da negatividade, a partir de sua impossibilidade empírica concreta, pelo menos do ponto de vista de que o ‘excluído’ e o ‘dominado’ possa efetivamente intervir... (DUSSEL, 1993, p. 9).

          

Apropriamo-nos das ideias do autor que remetem à exploração do homem pelo homem, a partir das conquistas geográficas e humanas históricas, trazendo-as para o debate proposto aqui, da exploração e abandono social. Não se trata mais do que ele achou do “mito da modernidade”, quando o conquistador europeu negou aos povos da América Latina a identidade própria, mas como nós replicamos modelos exploratórios, mesmo indiretamente, ao assumirmos e/ou admitirmos a negação do outro pelo Estado e nós mesmos. Replicamos o que Dussel chama de “soberba” europeia no nosso dia a dia, ao negar a identidade do povo da rua para, talvez, não darmos conta do nosso caráter explorador?

Ao associar alteridade à capacidade humana da empatia, Martino e Marques (2020, p.106) avaliam que “A empatia está ligada a uma ideia de movimento, o ato de ir ao encontro da alteridade”. Ou seja, num movimento de deslocamento entre os sujeitos.

 Para tentar saber o que o outro possa estar sentindo, segundo os autores, é preciso ver algo dele em si mesmo. Nesse diálogo, acontece a troca entre pessoas de realidades distintas. No caso, compreender a experiência da pessoa em situação de rua, desprovida de tudo, materialmente e até emocionalmente falando, é um exercício praticamente impossível para os que vivem na sociedade estabelecida por normas e poder de consumo.

Admitamos o nosso próprio domínio ao permitir que outras pessoas sobrevivam à margem do estabelecido pela sociedade atual. Apelamos para justificativas várias como religiosas, capacitismo, meritrocacia? Julgamos o outro pela fraqueza que nem sempre é individual, porém imposta pela cultura dominante e pelo dominador que somos todos nós?

Para Martino e Marques (2020, p.25), “reconhecer a condição humana dos outros” requer estabelecer “potências e limites”. Além disso, “estendendo até elas o grau de exigência e tolerância que espero para mim”.

Voltando a Dussel, conforme afetamos e somos afetados, cabe a cada um de nós colocarmos a pessoa pobre ou excluída como vítima de um sistema neoliberal. O que remete a Sung e seus estudos sobre o “novo mito do capitalismo”. Só teria valor quem gera valores nesse mundo moderno?

Desvelar o caráter idolátrico do sistema capitalista global de hoje é fundamental para que possamos resgatar a noção de dignidade e direitos humanos e, com isso, a de justiça social... Sem a crítica do caráter inquestionável do mercado, não é possível avançar nas lutas por mais justiça social. Porque todas essas reivindicações exigem intervenção e regulação do mercado (SUNG, 2018, p. 25).

 

A dominação, em suas diferentes práticas, de acordo com a “ética da libertação”, exclui parte do todo. Parte que pode ser uma nação explorada ou uma parcela da sociedade. Pensar o fenômeno do “encobrimento” desperta a consciência, que também pode se dar através da solidariedade, a partir de ações que podem ser individual, coletiva, social ou até mesmo religiosa em suas diferentes crenças. O que, de acordo com Dussel, parte da ação ética crítica transformadora.

A questão que buscamos entender neste artigo é como reconhecer aquilo que invisibilizamos, ou como valorizar aquilo que repudiamos, negamos ou não valorizamos.

 

1.2 O pavor dos pobres é ao mesmo tempo histórico e atual

Cortina entende que precisamos nomear as coisas para que elas existam. Assim foi criado o conceito de aporofobia que, acreditamos, insere-se perfeitamente no debate que propomos neste estudo. A autora justifica que o “manto da invisibilidade” [...] “distorce as coisas ocultando-as” (2020, posição 285) e a prática aporofóbica expande a exclusão em suas diferentes manifestações, seja pela homofobia, transfobia, racismo, xenofogia etc., mas a causa original, que a quantifica, é a pobreza.

De acordo com o Censo da População de Rua de São Paulo, no ano de 2019, moraram na rua da capital paulista 24,3 mil pessoas. Ao longo da pandemia, principalmente no ano de 2021, o número de pessoas em situação de rua cresceu a olhos vistos, estimados pelas organizações sociais e mais de 35 mil pessoas. Razão pela qual a prefeitura contratou uma empresa para realizar um novo estudo censitário, iniciado no final de outubro do mesmo ano e não finalizado até a conclusão deste estudo. Na ocasião, recenseadores relataram terem dificuldade de encontrar os entrevistados enquanto outros criticaram as regras da pesquisa.


Há muita gente há pouco tempo de rua, oriundos do desemprego, despejos, ou por não conseguir pagar a alimentação. Gente que tem de ser vista e o Censo não está contando… É matemática. É preciso marcar presença, identificar essas pessoas, denunciou um deles (AMARAL, 2021).

 

A realidade mensurada e registrada, no entanto, acaba por apagar a realidade vivida nas ruas, ao registrar a história. Segundo Cortina, para buscar a cura da “patologia social” é preciso conhecê-la, diagnosticá-la e curá-la. “Tentar descobrir sua etiologia” (2020, posição 366).

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (ONU), o Brasil retornou ao Mapa da Pobreza no ano de 2018. Então, eram cerca de 50 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Fenômeno que se agravou durante a pandemia da Covid-19, quando, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 25% da população brasileira viviam abaixo da linha da pobreza, apesar das tentativas de amenizar o fenômeno através dos programas sociais vigentes. Como agravante os estudos identificam que a pobreza é maior entre a população afrodescendente, idosos, mulheres com filhos menores. Ou seja, os mais vulneráveis, que costumam somar julgamentos estereotipados.

A pobreza involuntária, como nomeia Cortina, “não é estática” e a etnia e raça “são um ingrediente para configurá-la”. Mas como se mensura a pobreza? A autora entende que pobres são aqueles que não são rentáveis.

Remetendo à pessoa em situação de rua, questionamos que espaço ocupa na sociedade alguém que está num lugar, fisicamente e provisoriamente falando, mas veio de outro; alguém que tem uma história não revelada e, ao mesmo tempo, está inserida, mas não integrada à sociedade local atual? Alguém que vive uma transição, ou uma espera e que não é reconhecido pelo outro. Inclusive pela comunidade da rua que é diversa e replica os modelos sociais hegemônicos, como explica o religioso católico que integra a Pastoral do Povo da Rua e ficou conhecido durante a pandemia como o defensor “dos fracos e dos pequenos”, padre Júlio Lancelotti[1].

 

1.3 Identidade é nata ou se forma?

Buscamos, a partir do pensamento de Bauman (2005), como o conceito de Identidade pode nos ajudar na nossa reflexão. Para ele, “os habitantes do mundo líquido moderno somos diferentes” (p. 33) e “o anseio por identidade vem do desejo de segurança” (p.35). O autor questiona, contudo, o caráter “ambivalente” nessa busca, sobretudo, em um mundo marcado por individualidades.

Na condição de imigrante, o autor relata a própria história contando o episódio da escolha do hino que representaria a sua origem, numa homenagem em que recebeu o título de doutor honoris causa, na Universidade Charles, de Praga. Ele testemunhou, em entrevista, o sentimento de se sentir ao mesmo tempo incluído e excluído ao ter a sua identidade associada ao hino europeu. Um exemplo da complexidade de ocupar e não ocupar um lugar ao mesmo tempo.

Corroboramos com ele que “as guerras pelo reconhecimento são travadas individual ou coletivamente” (BAUMAN, 2005, p.45), porém em frentes distintas: a escolhida e a ultrapassada. E não se esquece dos sem escolha:


Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de sua escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas regiões inferiores da hierarquia de poder. Há um espaço ainda mais abjeto – um espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que têm negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classificação atribuída e imposta, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto. São as pessoas recentemente denominadas de ‘subclasse’: exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas (BAUMAN, 2005, p. 46).

 

Nesse contexto, Bauman insere os “sem teto” e “mendigos”. Grupos de pessoas que ele identificou como subclasses e que, neste estudo, nomeamos como pessoas em situação de rua. O “lixo humano” da sociedade globalizada que, segundo o autor, produz as “pessoas rejeitadas” como um “fenômeno mundial”.

 

É nessa exclusão, mais do que a exploração apontada por Marx um século e meio atrás, que está na base dos casos mais evidentes de polarização social, de aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de pobreza, miséria e humilhação (BAUMAN, 2005, p. 47).

 

Com a identidade negada e vozes emudecidas, com o que sonham os excluídos? Para Bauman, os “abandonados, desocializados, fragmentados e solitários” resistem pelo mundo afora esquecidos, “renegados e destinados à pilha de lixo”.

Novamente, remetendo a Sung (2018), chamamos a atenção para a valoração do ser humano. Para ele, “o ser humano não tem valor, tem dignidade. E a dignidade humana é algo que não pode ser comparado e medido; é igual em todas as pessoas”. Pessoas que, de acordo com Bauman (2005), sobrevivem imersos numa sociedade fluida onde o inesperado é a única certeza.

1.4 Sentença de morte é prática excludente

Dussel nos mostra sinais ao esclarecer que “a humanidade, em seu núcleo racional, é a emancipação da humanidade do estado da imaturidade cultural civilizatória”. Nesse estado de coisas, “no horizonte mundial imola homens e as mulheres do mundo periférico como vítimas exploradas, cuja vitimização é encoberta com o argumento do sacrifício ou custo da modernização” (DUSSEL, 1993, p. 152). O autor reconhece em sua obra que, ao longo da história, a violência justificada é marcada pelo roubo, pela opressão, pelo homicídio.

 No Brasil, país explorado no passado, não é incomum as pessoas morrerem ou serem assassinadas nas ruas das cidades, inclusive São Paulo. Geralmente, os crimes de ódio são movidos pelo preconceito e/ou intolerância, como ocorreu com o índio da etnia pataxó, Galdino Jesus dos Santos, que teve 95% do corpo queimado por uma “brincadeira” de jovens, em Brasília, em 1997. Ou durante o “Massacre da Sé”, em 2014, em São Paulo, quando sete pessoas foram assassinadas e outras seis sobreviveram com sequelas, e na Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 2016, em que oito jovens foram executados. Todas as vítimas eram pessoas em situação de rua.

Cortina explica serem várias as características dos crimes de ódio. Entre elas, a difamação de uma parcela da comunidade sob o olhar excludente. Em suas palavras: “[...] ainda que seja difícil de comprová-los, se não impossível, porque em certas ocasiões remetem a uma história remota que foi gerando preconceito ou se formam através de murmúrios e fofocas” (CORTINA, 2020, posição 593).

A autora defende a liberdade de pensamento e expressão, mas pede atenção aos riscos do discurso do ódio que, segundo ela, “têm em comum o fato de serem dirigidos a um indivíduo por pertencer a um determinado coletivo” (CORTINA, 2020, posição 806). Explica existir uma desigualdade entre os grupos, dos que atingem e são atingidos pelo ódio. O agressor coloca-se como superior, mas alerta ser uma prática que deveria ser considerada criminosa.

O antídoto, acredita, poderia estar no aumento da autoestima como “chave ética para neutralizar os discursos de ódio” (CORTINA, 2020, posição 918), apesar de considerar impossível compartilhar um mínimo de justiça entre as partes envolvidas. Isso pela ausência de igualdade e reconhecimento entre o agressor e o agredido.

De acordo com Bauman (2005), os pobres – ou excluídos – seriam as pessoas que a sociedade nega reivindicar uma “identidade distinta da classificação imposta e atribuída”. Dussel (1993) defende que apenas através da “ética da transformação” evoluiremos à crítica do olhar. O que ele resume como “aspecto negado-oprimido e afetado-excluído. Para ele, quem sabe, um dia, a partir da metafísica da alteridade, poderemos modificar a convivência humana.

No Brasil,[2] o religioso e pároco da Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio Lancellotti, pegou para si a missão de amenizar as dores das pessoas em situação de rua, que ele chama de “fracos e oprimidos”. Na mesma medida em que ele estimula a solidariedade, ele contabiliza críticas e o discurso de ódio. Por exemplo, ele foi insultado e caluniado no início de janeiro de 2022, xingado com palavras de baixo calão nas mídias sociais e acusado de lucrar com a “miséria alheira”.

Ele proclama o discurso da paz ao mesmo tempo em que promove ações sociais inter-religiosas, estimulando boas práticas em conjunto envolvendo líderes de diferentes culturas e credos em prol dos que ele chama “do povo da rua”. Ele não modifica as consequências da modernidade, mas pratica a alteridade.

Pregando a verdade ao poder: o padre de São Paulo enfrentando o Bolsonaro, é o título da reportagem publicada no The Gardian. A chamada anuncia que o religioso é “defensor declarado dos sem-teto”. Na reportagem, ele esclarece que “a pandemia da Covid-19 piorou as condições de vida dos sem-teto de São Paulo, enquanto o ultraconservadorismo da era Bolsonaro (Jair Bolsonaro, presidente do Brasil) alimentou o que o padre descreve como ‘aporofobia’ – o medo e a rejeição dos pobres”.

O religioso denuncia as mazelas vividas nas ruas de São Paulo, o descaso da sociedade, a omissão do poder público. Ao mesmo tempo dialoga com os diferentes atores sociais buscando valorizar a pessoa humana, minimizando as consequências da política neoliberal globalizada a partir da prática diária da solidariedade; sobretudo, buscando despertar a identidade do Povo da Rua da capital paulista.

 

Considerações Finais

Quando criança, eu fui treinada a temer o “homem do saco”, as pessoas marcadas por Deus ou aqueles que viviam à margem, pois geralmente eram homens perigosos, consciente ou inconscientemente. A partir do meu desenvolvimento pessoal, tomei consciência de que viver de formas alternativas é um direito e escolha pessoal, porém a exclusão social é imposta aos que não têm direitos.

Aos poucos, um contingente crescente de “vagabundos” ou “marginais” como costuma ser taxado o Povo da Rua tornou-se maior e passou a incluir pessoas de todos os sexos e/ou identidade de gênero, idosos, pessoas com deficiência, adolescentes e crianças. Vítimas do sistema moderno onde pessoas humanas só valem o que produzem.

A pobreza involuntária, como identifica Cortina, é consequente da desigualdade imposta pela lógica do mercado, mas também das práticas e moral social excludentes, resultantes e/ou associados a preconceitos e estereótipos. Os mendigos ou vagabundos de ontem, eternamente invisibilizados ou culpabilizados, são chamados hoje de pessoas em situação de rua. Durante a pandemia, juntaram-se a eles os sem trabalho, apenas entre os desalentados, pessoas que desistiram de procurar um emprego formal, somando mais de 5 milhões de brasileiros no final de 2021.

Acreditamos que o processo de globalização, agravado pelas práticas do neoliberalismo, potencializaram a segregação urbana. Para milhares de brasileiros, a modernidade não aconteceu, e mesmo na capital econômica do Brasil só restam às ruas, as calçadas, as pontes e os viadutos como proteção. Nesse ambiente, muitos perdem as referências de lar, de trabalho, de sociedade e identidade.

E, ao abrirmos mão do princípio da Alteridade, não reconhecemos nessas pessoas algo de nós, afastando-nos e os afastando. A ausência de empatia que impede o reconhecimento do outro e o conhecimento de nós mesmos.

Nesse cenário, todos somos “estranhos”. Principalmente durante os primeiros 21 meses da pandemia da Covid-19, quando a maioria de nós foi obrigada a manter isolamento social e muitos de nós não se comoveram com aqueles que vivem nas ruas. Inclusive, por isso, o número de trabalhadores como prestadores de serviços domésticos e diversos perderam as suas fontes de renda, impactando inúmeras famílias, inclusive as que tiveram de inverter a lógica do isolamento social, pois tiveram de sair de suas casas e foram morar nas ruas.

Acreditamos que esse fenômeno do isolamento, às avessas, impacta sobremaneira na identidade pessoal ou até mesmo na formação da identidade. Nas ruas, as pessoas perdem os vínculos, e as relações formadas na tentativa de garantir a sobrevivência costumam ser tênues e passageiras. Nos abrigos, os casais são separados, na lida do dia a dia as pessoas em situação de rua migram dentro dos espaços urbanos, com exceção a ambientes que envolvem algum tipo de trabalho ou dependências diversas. Por exemplo, a região da chamada “cracolândia”, em São Paulo, em que dependência química e comércio de drogas se retroalimentam.

Entendemos, ao longo desta pesquisa, que o “mito da modernidade”, quando nos foi prometido o “paraíso do consumo” continua gerando a desigualdade e enriquecimento desumanos na maior parte da população mundial. Desse contexto histórico também foi gerado o “encobrimento do outro” que, a nosso ver, atinge sobremaneira a população em situação de rua.

Apesar de correntes diversas de pensamento de Dussel se comparado ao de Bauman, consideramos que ambos corroboram para o nosso estudo. Um pelo conceito do mito da modernidade histórica envolta no processo exploratório da América Latina, e o outro sinalizando a modernidade tardia vivida pelo povo latino-americano. 

O povo da rua também é fruto desse contexto cruel, economicamente e socialmente falando. Durante a pandemia, a realidade vivida por eles se agravou, primeiro isolando-os geograficamente falando e, depois, afastando-os do convívio social.

Com este artigo, pretendemos fomentar o debate em torno do povo oprimido. Se antes eles somavam os explorados pelo mercado de trabalho, hoje, são ignorados pelo sistema econômico, encobertos e apagados em sua cultura e identidade.

 

Referências 

 

AMARAL, Adriana do. Qual a política que norteia o #Censo da #PopRua em São Paulo? Construir Resistência. Disponível em:

https://construirresistencia.com.br/qual-a-politica-que-norteia-o-censo-da-poprua-em-sao-paulo/. Acesso em: 18 dez. 2021.

 

ATENTADO. Grupo jogou álcool em corpo de pataxó enquanto ele dormia; acusados negam ter ateado fogo ao índio. Índio é queimado por estudantes no DF. Folha de S. Paulo Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff210401.htm . Acesso em: 21 dez. 2021.

 

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygmunt Bauman. Tradução: Carlos Alberto Medeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

CORTINA, Adela. Aparofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Tradução:  Daniel Fabre. São Paulo: Contracorrente, 2020. E-book.

 

COSTA, Evandro Fonseca; MATOS, Junot Cornélio. O pensamento de Enrique Dussel: um olhar crítico pelo prisma arendtiano. Perspectiva Filosófica. v. 44, n. 2, 2017.

 

DUSSEL, Enrique. O Encobrimento do Outro: A origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, [1949], 1993.

 

MARTINO, Luís Mauro Sá; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. No caos da convivência: ideias práticas sobre a arte de lidar com os outros. Petrópolis: Vozes, 2020.

 

MIRANDA, Beatriz; CHEIBUB, Ian. Pregando a verdade ao poder: o padre de São Paulo enfrentando o Bolsonaro. Júlio Lancellotti é um defensor declarado dos sem-teto - uma causa que o torna impopular junto às autoridades brasileiras. Publicado em: 4 jan. 2022. The Gardian. Disponível em:

https://www.theguardian.com/global-development/2022/jan/04/preaching-truth-to-power-the-sao-paulo-priest-standing-up-to-bolsonaro. Acesso em: 6 jan.2022.

PREFEITURA DE SÃO PAULO. Pesquisa Censitária da população em situação de rua, Caracterização socioeconômica da população em situação de rua e Relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo. Relatório final da pesquisa amostral do perfil socioeconômico. Publicado em: 29 jan.2020. Disponível em:  https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/Produtos/Produto%209_SMADS_SP.pdf. Acesso em: 21 dez.2021.

 

SUNG, Jung Mo. Idolatria do Dinheiros e Direitos Humanos: uma crítica teológica do novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018.

 

 

 

 

 



[1] Durante participação do encontro realizado pelo Grupo de Pesquisa Mob-Com – Mobilização pela Comunicação, durante o Congresso Metodista 2021, realizado pela UMESP.

[2] Matéria publicada no site Construir Resistência, dia 4 de janeiro de 2022. Disponível em: https://construirresistencia.com.br/2020-o-ano-que-nao-acabou/.






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