segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Mais do que janelas do mundo, os livros escancaram as nossas almas


Páginas descobertas, 
fotos: Adriana do Amaral


 Por Adriana do Amaral

Eu sempre gostei de ler, mesmo antes de ser capaz de fazê-lo, motivada pela estante da casa de meus pais e pela ausência de bibliotecas e livrarias da minha cidade do interior. Li menos do que queria, mas sempre li mais do que a maioria. Também li para os meus filhos e, hoje, eles me motivam para outras leituras. Atualizam-me.

Como acadêmica em formação, eu preciso de pausas nas referências obrigatórias, próprias da tese a ser defendida, daqui a dois anos. A literatura me é um alento, que refresca a minha mente.

Apenas neste primeiro mês do ano, 2023, graças às férias, conseguir ler sete livros: cinco deles puro deleite. Todos, emprestados pela minha filha, que depois da dura formação até conquistar o título de especialista em nefrologia, agora reserva um tempo diário para cultivar o velho hábito de ler. Eu simplesmente parei para lê-los.

Curiosamente -ou seria uma escolha inconsciente?- lemos, minha filha e eu, autoras mulheres: Annie Ernaux (O acontecimento e O lugar), Carla Madeira (A natureza da mordida) e Martha Batalha (Nunca houve um Castelo). Li dois autores homens: paixão antiga, Marcelo Rubens Paiva (Do começo ao fim), que sabe do universo feminino tal Chico Buarque de Holanda, tradição de mãe para filha, e minha paixão recente,  Boaventura de Souza Santos (Descolonizar - Abrindo a História do Presente), que faz da ciência literatura qual Eduardo Galeano, e  também me inspira a "atravessar". Á referência acadêmica de Santos somou-se  a Silva, Hall e Woodward (Identidade e diferença -A perspectiva dos Estudos Culturais), mostrando que as diferenças nos permitem ser.

Cada leitura me absorveu de formas distintas 



Sou daquelas que sente, ri e chora com os personagens, mas que também se identifica e se redescobre através deles. Eu risco os livros, quando são meus. Hábito que aprendi ao ler, e me apaixonar, pelo poeta Mário Quintana e seu poema Da paginação. Alguns livros me reacendem o sonho antigo, de um dia ser plenamente realizada se for capaz de escrever uma frase tal Gabriel Garcia Marques, o autor predileto dentre tantos.

Com as leituras de 2023 - confesso que o resultado das eleições, depois de seis anos de espera desde o golpe de 2016, me aguça a vontade de continuar lutando para um Brasil melhor atualizei a nossa história colonial, patriarcal e capitalista, também desvelada através da ficção. A identificação é tanta que reproduzo aqui alguns dos grifos de cada livro lido:


"Lívia largou o papel, rasgou em pedaços e começou a chorar tudo o que não chorou quando sua mãe foi internada por cirrose na UTI, quando o irmão avisou que acharam metástase no fígado, na semana que durou o calvário, até a morte rápida. Chorou ali o que não chorou no velório, no enterro, na missa. Aproveitou então que estava sozinha e desabou. Estou estressada, cansada, só, mocinho, muito só. Sentada agora no nosso sofá, vendo o mijo do meu pai pelo chão. O que eu faço mocinho? Você está tão longe... Se levantou, foi até a despensa, voltou com um esfregão, detergente, limpou o chão sujo. Que bosta que é a minha vida! Limpou aos prantos, Ao ponto de não saber mais o que era mijo e o que era lágrimas."

(#MarceloRubensPaiva, Do começo ao fim)


"Tenho a sensação de que passei pelo bosque e vi apenas lenha para fogueira. Sinto que gastei tanta vida com sofrimentos que não mereciam apelos de misericórdia. Olhe pra mim, não passo de uma velha branca em uma zona sul ensolarada! Devo admitir, não passei fome, não me cobri de farrapas, não me acusaram do que não fiz. Não perdi filhos, não fui roubada, abusada, torturada, escalpelada. Não fui banida. Não estive na guerra. Não me impediram de entrar em nenhum lugar onde tinha o direito de estar. Nenhuma tragédia, nenhuma grande injustiça, nenhuma remorso corrosivo. Eu não cruzei com a besta amarela no corpo do nazista que obrigou a pobre coitada daquela mãe, Sofia, a uma falta brutal de escolha, nem com os torturadores que Ivan Karamazóv descreve para seu irmão Aliócha que me fez odiar os torturadores e amar a literatura."

"Não podia pedir a alguém chorando que saísse de onde estava para que eu me sentisse melhor... O que você não tem mais que te entristece tanto?... Será que você não vê que não fez nada?... Por que não toma para si o lugar de quem foi ofendida e não o de quem deve se desculpar?...

(#CarlaMadeira, a Natureza da Mordida)


"Onde nunca se usam palavras novas para substituir outras... Meu pai tinha consciência de desempenhar uma função social necessária... Sem sombra de dúvida, todas essas coisas serviam para dizer aos que dirigem, mandam e escrevem nos jornais..."

(#AnnieErnaux, O lugar)


"A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e excluir... Dizer "o que somos" significa também dizer "o que não somos." 

"Achei que tinha escondido tudo... Botei Marx, Engels, Lenin (nenhum Trotsky) no armário da cozinha... Ela chegou às 11:30 exatamente... o olho dela cai em cima ao mesmo tempo que o meu de uma fileira de vinte distintivos pela paz mundial... Gostaria que o meu bebê vivesse me um mundo sem perigo nucelar... Ah, seus olhos acenderam..."

Jakie  Kay, Documentos de Adoção, 1991

(#TomasTadeu da Silva (org). Hall, Stuart. Woodward, Kathryn,  Identidade e Diferença -A perspectiva dos Estudos Culturais)


"As coisas aconteceram comigo para que eu as conte e se tornem escrita".

(#AnnieErnaux, O Acontecimento)


"Há sempre uma esperança que desta vez seja diferente. A história, afinal, nunca se repete. É a esperança que cria a luta, e, paradoxalmente, é também a luta que cria a esperança."

(#BoaventuradeSousaSantos, Descolonizar -Abrindo a história do presente)


"Era uma vida inteira que deixava para trás... era uma vida inteira que tinha pela frente... Passou pela turca que vendia fósforos, pelo iraniano que vendia empadas, pelo mulato com tabuleiro de doces... árabes, índio, chineses... negros falando em dialeto... em algum momento estrangeira e cariocas deixaram de se ver como exóticos para fazer parte do mesmo cenário... e se tornando, a cada requebrado, um pouco menos estrangeira..."

(#MartaBatalha, Nunca Houve um Castelo)


Parece que esses personagem - e autores- me conhecem. Seriam os livros espelhos?











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