Este artigo discursa sobre a perda de identidade, a partir do fenômeno que levou milhares de pessoas a viverem em situação de rua durante a pandemia da Covid-19 e agravou a realidade daqueles que já não tinham teto, afetando pessoas de identidades, etnias e nacionalidades diversas.
Buscamos com base nos conceitos de Encobrimento do Outro, Identidade e Aporofobia, sob as óticas de Dussel, Bauman e Cortina, a compreensão de como a população, em decorrência do deslocamento interno forçado, foram invisibilizados, como pessoas humanas, ao viverem à margem do ideal social pregado pelo "mito da modernidade".
Como a ausência do lugar de fala os fez ser vitimizados e/ou culpabilizados pelos diferentes olhares que aqui tratamos como aporogóbicos.
Por meio da revisão de literatura, construímos uma leitura dialógica, sem buscar respostas, mas caminhos ao questionarmos valores que descartam os Direitos Humanos Universais.
Identidade. Aporofobia. Encobrimento do Outro. Mito da Modernidade. Pessoa em Situação de Rua.
Introdução
Ao longo da História, a sociedade sempre conviveu com a realidade da
população em situação de rua, que é formada por perfis diversos e costuma
concentrar migrantes que não conseguiram trabalho, pessoas com deficiência, vítimas
de acidentes, pacientes com problemas mentais ou em situação de droga, egressos
do sistema carcerário e/ou vítimas dos abusos como violência doméstica, moral e
sexual, além de desagregados da sociedade tradicional. Ao longo dos anos 2020 e
2021, até a finalização deste artigo, a pandemia da Covid-19 fez aumentar o
número de brasileiros sobrevivendo em condições extremas da vulnerabilidade
social: os sem-teto.
Um fenômeno que precede à crise
gerada pela pandemia, já que na capital paulista eram mais de 24 mil pessoas em
2019, de acordo com a Pesquisa Censitária da População de Rua. O aumento dessa
população, ao longo dos últimos 21 meses, também resulta da crise financeira
que atingiu a economia local e mundial, com a concentração de renda e ausência
de trabalho formal. Crescimento que levou a Prefeitura de São Paulo a repetir o
Censo da População em Situação de Rua no final de 2021.
Estima-se que mais de 35 mil vivem sem teto e sem trabalho nesse
contexto, o que alterou o perfil dessa população de pessoas solitárias a
famílias com crianças. De acordo com o IBGE, um a cada quatro brasileiros
sobrevivem à pandemia em condições de vulnerabilidade.
O agravamento dessa realidade teve início a partir de março de 2020,
quando o Brasil passou a enfrentar a insegurança sanitária, o isolamento social
e a fragilidade econômica, consequentes da contaminação pelo SARS-CoV-19 e suas
mutações. Também, recorrentes às escolhas políticas do Estado vigente. Nesse contexto, brasileiros perderam algumas dentre as
suas referências sociais, atingindo não apenas processos individuais, mas
coletivos que impactaram em suas identidades. Por exemplo: crianças ficaram
órfãs, adultos perderam seus familiares, amigos e colegas, trabalhadores
perderam suas fontes de renda formais e informais.
Nesse período, o capitalismo, aguçado pelos parâmetros do neocapitalismo,
aumentou o abismo social que tem afetado as populações carentes não apenas no
Brasil como em todo o mundo. Pessoas que, em consequência da pobreza ou luto,
foram excluídas dos seus lugares de pertencimento, seja na família, comunidade,
trabalho e sociedade, visto que um novo processo migratório aconteceu, dessa
vez dos ambientes domésticos para as ruas e calçadas, em decorrência da instabilidade
econômica gerada pela pandemia.
Perguntamo-nos: como ser alguém sem possuir nada, materialmente falando,
existe dentro dos padrões sociais de uma sociedade “moderna” onde o poder
econômico costuma ditar as regras? Como ser reconhecido como pessoa humana, ou
cidadão, sem garantias de direitos e políticas públicas não cumpridas? Como
resistir ao olhar preconceituoso e discriminatório?
Para Cortina (2020), a “pobreza involuntária é um mal de que se padece
por causas naturais ou sociais” e que, segundo ela, já poderia ter sido
suprimida no século XXI. Apesar de a pobreza
involuntária não ser um traço de identidade, pois não se trata de uma escolha
pessoal, a autora esclarece que poderia ser um processo negociado por meio do
diálogo, levando-se em conta o “entorno social”.
Refletimos, ao longo deste artigo, sobre a relação entre a miséria, a
perda da identidade, a ausência de diálogo e de oportunidades que perpetua a
pobreza involuntária. Questionar como o apagamento social acontece envolto ao
mito da modernidade e do mercado que descarta o oprimido.
Ao nos debruçarmos nesse fenômeno, ponderamos sobre o caos social que se
abateu no Brasil, a partir da compreensão, principalmente, sobre o conceito de
aporofobia, que é a aversão ao pobre, bem como refletimos se o coronavírus, que
é a causa do distanciamento social, fomentou o isolamento de parte da sociedade
brasileira, consequência de escolhas políticas e econômicas na sociedade
globalizada em que vivemos.
O pobre é o “rejeitado e o descapacitado”, que incomoda porque ele gera
problemas aos demais, afirma Cortina (2020). A autora inclui no contexto de aporofobia
não apenas os miseráveis, mas também os migrantes e todos aqueles que resistem
no cenário de abandono. “São amostras palatáveis de aparofobia, de rejeição, de
aversão, temor e desprezo ao pobre, ao desemparado que, ao menos aparentemente,
não pode devolver nada de bom em troca” (CORTINA, 2020, posição 234).
Sem pretender encontrar soluções para reverter o caos social atual, mas
tentar ao menos compreendê-lo em suas variantes, ativemo-nos na revisão de
literatura para discorrer sobre o tema proposto. Apoiamo-nos no conceito de alteridade,
a partir da leitura de Dussel (1993), onde o entendimento sobre a realidade do
oprimido parte da filosofia da libertação, que requer encontros entre os
desiguais, bem como nos atentamos ao conceito de Identidade, por meio da visão
de Bauman. E como ambos têm visões diferentes sobre o “mito da modernidade”,
respectivamente sob o olhar para a América Latina e Europa, concordamos
tratar-se de um processo que não deu certo, pois é limitado a poucos e exclui a
maior parte das benesses do mundo ideal prometido.
Ao longo desse estudo, pensamos como esse fenômeno se manifesta na
cidade mais rica do país ─ São Paulo ─ pensando brevemente sobre os conceitos
de Encobrimento do Outro, Empatia e Alteridade, tentando, a partir do diálogo
com Dussel (1993), trazer para os dias atuais o processo histórico da dominação
e descarte social. Primeiro os exploradores avançam, depois dominam, encobrem,
apagam e descartam.
Para finalizar, consideramos a questão da aporofobia, a partir dos
números reais, contabilizados pelo Censo da População de Rua na capital
paulista. Na sequência, buscamos entender como a identidade é um não direito ao
povo da rua que, por si só, é múltiplo e diverso. Também, refletir sobre
dignidade, violência e exclusão social.
1.1 Se um não é... todos não somos
“Ser ou não ser. Eis a questão”. A frase dita por Hamlet, personagem da
peça homônima, escrita por Shakespeare, nos ajuda a refletir sobre o conceito
de encobrimento do outro. Ao nos apresentar o “Não Ser”, Dussel nos instiga a
pensar na pessoa excluída a partir da ótica da ética na filosofia da libertação
e do princípio da alteridade. Afinal, mesmo aquele que não conhecemos e/ou
reconhecemos nos transforma a partir do encontro. Pelo menos, fazendo-nos parte
do mundo onde nos incluímos, mesmo indiretamente.
O autor nos leva a repensar como somos independentes e dependentes ao
mesmo tempo, pois ao interagirmos com terceiros nos transformamos mutuamente.
Isso a partir dos nossos encontros sociais, públicos, coletivos, privados ou
íntimos. Explicando: mesmo quando as relações são assimétricas e/ou
superficiais, como acontece com a maioria das pessoas que têm casa e aquelas
que vivem em situação de rua, o encontro pode limitar-se a um olhar, mesmo que
de repulsa, ou de aproximação através da empatia.
Para a ‘filosofia da libertação’, que parte da Alteridade, do ‘compelido’,
do ‘excluído’ (a cultura do dominado, explorado, do concreto-histórico)
trata-se de mostrar essas condições de possibilidade do diálogo, a partir da
afirmação da alteridade e, ao mesmo tempo, da negatividade, a partir de sua
impossibilidade empírica concreta, pelo menos do ponto de vista de que o ‘excluído’
e o ‘dominado’ possa efetivamente intervir... (DUSSEL, 1993, p. 9).
Apropriamo-nos das ideias do autor que remetem à exploração do homem
pelo homem, a partir das conquistas geográficas e humanas históricas,
trazendo-as para o debate proposto aqui, da exploração e abandono social. Não
se trata mais do que ele achou do “mito da modernidade”, quando o conquistador
europeu negou aos povos da América Latina a identidade própria, mas como nós
replicamos modelos exploratórios, mesmo indiretamente, ao assumirmos e/ou
admitirmos a negação do outro pelo Estado e nós mesmos. Replicamos o que Dussel
chama de “soberba” europeia no nosso dia a dia, ao negar a identidade do povo
da rua para, talvez, não darmos conta do nosso caráter explorador?
Ao associar alteridade à capacidade humana da empatia, Martino e Marques
(2020, p.106) avaliam que “A empatia está ligada a uma ideia de movimento, o
ato de ir ao encontro da alteridade”. Ou seja, num movimento de deslocamento
entre os sujeitos.
Para tentar saber o que o outro
possa estar sentindo, segundo os autores, é preciso ver algo dele em si mesmo.
Nesse diálogo, acontece a troca entre pessoas de realidades distintas. No caso,
compreender a experiência da pessoa em situação de rua, desprovida de tudo,
materialmente e até emocionalmente falando, é um exercício praticamente
impossível para os que vivem na sociedade estabelecida por normas e poder de
consumo.
Admitamos o nosso próprio domínio ao permitir que outras pessoas sobrevivam
à margem do estabelecido pela sociedade atual. Apelamos para justificativas
várias como religiosas, capacitismo, meritrocacia? Julgamos o outro pela
fraqueza que nem sempre é individual, porém imposta pela cultura dominante e pelo
dominador que somos todos nós?
Para Martino e Marques (2020, p.25), “reconhecer a condição humana dos
outros” requer estabelecer “potências e limites”. Além disso, “estendendo até
elas o grau de exigência e tolerância que espero para mim”.
Voltando a Dussel, conforme afetamos e somos
afetados, cabe a cada um de nós colocarmos a pessoa pobre ou excluída como
vítima de um sistema neoliberal. O que remete a Sung e seus estudos sobre o
“novo mito do capitalismo”. Só teria valor quem gera valores nesse mundo
moderno?
Desvelar o caráter idolátrico do sistema capitalista global de hoje é
fundamental para que possamos resgatar a noção de dignidade e direitos humanos
e, com isso, a de justiça social... Sem a crítica do caráter inquestionável do
mercado, não é possível avançar nas lutas por mais justiça social. Porque todas
essas reivindicações exigem intervenção e regulação do mercado (SUNG, 2018, p.
25).
A dominação, em suas diferentes práticas, de acordo com a “ética da libertação”,
exclui parte do todo. Parte que pode ser uma nação explorada ou uma parcela da
sociedade. Pensar o fenômeno do “encobrimento” desperta a consciência, que
também pode se dar através da solidariedade, a partir de ações que podem ser
individual, coletiva, social ou até mesmo religiosa em suas diferentes crenças.
O que, de acordo com Dussel, parte da ação ética crítica transformadora.
A questão que buscamos entender neste artigo é como reconhecer aquilo
que invisibilizamos, ou como valorizar aquilo que repudiamos, negamos ou não
valorizamos.
1.2 O pavor dos pobres é ao mesmo tempo histórico e atual
Cortina entende que
precisamos nomear as coisas para que elas existam. Assim foi criado o conceito
de aporofobia que, acreditamos, insere-se perfeitamente no debate que propomos
neste estudo. A autora justifica que o “manto da invisibilidade” [...]
“distorce as coisas ocultando-as” (2020, posição 285) e a prática aporofóbica
expande a exclusão em suas diferentes manifestações, seja pela homofobia,
transfobia, racismo, xenofogia etc., mas a causa original, que a quantifica, é
a pobreza.
De acordo com o Censo
da População de Rua de São Paulo, no ano de 2019, moraram na rua da capital
paulista 24,3 mil pessoas. Ao longo da pandemia, principalmente no ano de 2021,
o número de pessoas em situação de rua cresceu a olhos vistos, estimados pelas
organizações sociais e mais de 35 mil pessoas. Razão pela qual a prefeitura
contratou uma empresa para realizar um novo estudo censitário, iniciado no
final de outubro do mesmo ano e não finalizado até a conclusão deste estudo. Na
ocasião, recenseadores relataram terem dificuldade de encontrar os
entrevistados enquanto outros criticaram as regras da pesquisa.
Há muita gente há pouco tempo
de rua, oriundos do desemprego, despejos, ou por não conseguir pagar a
alimentação. Gente que tem de ser vista e o Censo não está contando… É
matemática. É preciso marcar presença, identificar essas pessoas, denunciou um
deles (AMARAL, 2021).
A realidade mensurada e registrada, no entanto, acaba por apagar a
realidade vivida nas ruas, ao registrar a história. Segundo Cortina, para
buscar a cura da “patologia social” é preciso conhecê-la, diagnosticá-la e
curá-la. “Tentar descobrir sua etiologia” (2020, posição 366).
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (ONU), o Brasil retornou ao
Mapa da Pobreza no ano de 2018. Então, eram cerca de 50 milhões de brasileiros
em situação de insegurança alimentar. Fenômeno que se agravou durante a
pandemia da Covid-19, quando, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), 25% da população brasileira viviam abaixo da linha da
pobreza, apesar das tentativas de amenizar o fenômeno através dos programas
sociais vigentes. Como agravante os estudos identificam que a pobreza é maior
entre a população afrodescendente, idosos, mulheres com filhos menores. Ou
seja, os mais vulneráveis, que costumam somar julgamentos estereotipados.
A pobreza involuntária, como nomeia Cortina, “não é estática” e a etnia
e raça “são um ingrediente para configurá-la”. Mas como se mensura a pobreza? A
autora entende que pobres são aqueles que não são rentáveis.
Remetendo à pessoa em situação de rua, questionamos que espaço ocupa na
sociedade alguém que está num lugar, fisicamente e provisoriamente falando, mas
veio de outro; alguém que tem uma história não revelada e, ao mesmo tempo, está
inserida, mas não integrada à sociedade local atual? Alguém que vive uma
transição, ou uma espera e que não é reconhecido pelo outro. Inclusive pela
comunidade da rua que é diversa e replica os modelos sociais hegemônicos, como
explica o religioso católico que integra a Pastoral do Povo da Rua e ficou
conhecido durante a pandemia como o defensor “dos fracos e dos pequenos”, padre
Júlio Lancelotti.
1.3 Identidade é nata ou se forma?
Buscamos, a partir do pensamento de Bauman (2005), como o conceito de
Identidade pode nos ajudar na nossa reflexão. Para ele, “os habitantes do mundo
líquido moderno somos diferentes” (p. 33) e “o anseio por identidade vem do
desejo de segurança” (p.35). O autor questiona, contudo, o caráter
“ambivalente” nessa busca, sobretudo, em um mundo marcado por individualidades.
Na condição de imigrante, o autor relata a própria história contando o
episódio da escolha do hino que representaria a sua origem, numa homenagem em
que recebeu o título de doutor honoris
causa, na Universidade Charles, de Praga. Ele testemunhou, em entrevista, o
sentimento de se sentir ao mesmo tempo incluído e excluído ao ter a sua identidade
associada ao hino europeu. Um exemplo da complexidade de ocupar e não ocupar um
lugar ao mesmo tempo.
Corroboramos com ele que “as guerras pelo reconhecimento são travadas
individual ou coletivamente” (BAUMAN, 2005, p.45), porém em frentes distintas:
a escolhida e a ultrapassada. E não se esquece dos sem escolha:
Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de
sua escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas
regiões inferiores da hierarquia de poder. Há um espaço ainda mais abjeto – um
espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que
têm negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classificação
atribuída e imposta, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto. São as
pessoas recentemente denominadas de ‘subclasse’: exiladas nas profundezas além
dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do qual as
identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem
ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas (BAUMAN, 2005,
p. 46).
Nesse contexto, Bauman
insere os “sem teto” e “mendigos”. Grupos de pessoas que ele identificou como
subclasses e que, neste estudo, nomeamos como pessoas em situação de rua. O
“lixo humano” da sociedade globalizada que, segundo o autor, produz as “pessoas
rejeitadas” como um “fenômeno mundial”.
É nessa exclusão, mais do que a exploração apontada por Marx um século e
meio atrás, que está na base dos casos mais evidentes de polarização social, de
aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de pobreza, miséria e
humilhação (BAUMAN, 2005, p. 47).
Com a identidade negada e vozes emudecidas, com o que sonham os
excluídos? Para Bauman, os “abandonados, desocializados, fragmentados e
solitários” resistem pelo mundo afora esquecidos, “renegados e destinados à
pilha de lixo”.
Novamente, remetendo a Sung (2018), chamamos a atenção para a valoração
do ser humano. Para ele, “o ser humano não tem valor, tem dignidade. E a
dignidade humana é algo que não pode ser comparado e medido; é igual em todas
as pessoas”. Pessoas que, de acordo com Bauman (2005), sobrevivem imersos numa
sociedade fluida onde o inesperado é a única certeza.
1.4 Sentença de morte é prática excludente
Dussel nos mostra sinais ao esclarecer que “a humanidade, em seu núcleo
racional, é a emancipação da humanidade do estado da imaturidade cultural
civilizatória”. Nesse estado de coisas, “no horizonte mundial imola homens e as
mulheres do mundo periférico como vítimas exploradas, cuja vitimização é
encoberta com o argumento do sacrifício ou custo da modernização” (DUSSEL, 1993,
p. 152). O autor reconhece em sua obra que, ao longo da história, a violência
justificada é marcada pelo roubo, pela opressão, pelo homicídio.
No Brasil, país explorado no
passado, não é incomum as pessoas morrerem ou serem assassinadas nas ruas das
cidades, inclusive São Paulo. Geralmente, os crimes de ódio são movidos pelo
preconceito e/ou intolerância, como ocorreu com o índio da etnia pataxó,
Galdino Jesus dos Santos, que teve 95% do corpo queimado por uma “brincadeira”
de jovens, em Brasília, em 1997. Ou durante o “Massacre da Sé”, em 2014, em São
Paulo, quando sete pessoas foram assassinadas e outras seis sobreviveram com
sequelas, e na Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 2016, em que oito
jovens foram executados. Todas as vítimas eram pessoas em situação de rua.
Cortina explica serem várias as características dos crimes de ódio.
Entre elas, a difamação de uma parcela da comunidade sob o olhar excludente. Em
suas palavras: “[...] ainda que seja difícil de comprová-los, se não
impossível, porque em certas ocasiões remetem a uma história remota que foi
gerando preconceito ou se formam através de murmúrios e fofocas” (CORTINA, 2020,
posição 593).
A autora defende a liberdade de pensamento e expressão, mas pede atenção
aos riscos do discurso do ódio que, segundo ela, “têm em comum o fato de serem
dirigidos a um indivíduo por pertencer a um determinado coletivo” (CORTINA,
2020, posição 806). Explica existir uma desigualdade entre os grupos, dos que
atingem e são atingidos pelo ódio. O agressor coloca-se como superior, mas
alerta ser uma prática que deveria ser considerada criminosa.
O antídoto, acredita, poderia estar no aumento da autoestima como “chave
ética para neutralizar os discursos de ódio” (CORTINA, 2020, posição 918),
apesar de considerar impossível compartilhar um mínimo de justiça entre as
partes envolvidas. Isso pela ausência de igualdade e reconhecimento entre o
agressor e o agredido.
De acordo com Bauman (2005), os pobres – ou excluídos – seriam as
pessoas que a sociedade nega reivindicar uma “identidade distinta da
classificação imposta e atribuída”. Dussel (1993) defende que apenas através da
“ética da transformação” evoluiremos à crítica do olhar. O que ele resume como
“aspecto negado-oprimido e afetado-excluído. Para ele, quem sabe, um dia, a partir
da metafísica da alteridade, poderemos modificar a convivência humana.
No Brasil,
o religioso e pároco da Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio Lancellotti, pegou
para si a missão de amenizar as dores das pessoas em situação de rua, que ele
chama de “fracos e oprimidos”. Na mesma medida em que ele estimula a
solidariedade, ele contabiliza críticas e o discurso de ódio. Por exemplo, ele
foi insultado e caluniado no início de janeiro de 2022, xingado com palavras de
baixo calão nas mídias sociais e acusado de lucrar com a “miséria alheira”.
Ele proclama o discurso da paz ao mesmo tempo em que promove ações
sociais inter-religiosas, estimulando boas práticas em conjunto envolvendo
líderes de diferentes culturas e credos em prol dos que ele chama “do povo da
rua”. Ele não modifica as consequências da modernidade, mas pratica a
alteridade.
Pregando a verdade ao poder: o padre de
São Paulo enfrentando o Bolsonaro, é o título da
reportagem publicada no The Gardian. A chamada anuncia que o religioso é
“defensor declarado dos sem-teto”. Na reportagem, ele esclarece que “a pandemia
da Covid-19 piorou as condições de vida dos sem-teto de São Paulo, enquanto o
ultraconservadorismo da era Bolsonaro (Jair Bolsonaro,
presidente do Brasil) alimentou o que o padre descreve como
‘aporofobia’ – o medo e a rejeição dos pobres”.
O religioso denuncia as mazelas vividas nas ruas de São Paulo, o descaso
da sociedade, a omissão do poder público. Ao mesmo tempo dialoga com os
diferentes atores sociais buscando valorizar a pessoa humana, minimizando as
consequências da política neoliberal globalizada a partir da prática diária da
solidariedade; sobretudo, buscando despertar a identidade do Povo da Rua da
capital paulista.
Considerações Finais
Quando criança, eu
fui treinada a temer o “homem do saco”, as pessoas marcadas por Deus ou aqueles
que viviam à margem, pois geralmente eram homens perigosos, consciente ou
inconscientemente. A partir do meu desenvolvimento pessoal, tomei consciência
de que viver de formas alternativas é um direito e escolha pessoal, porém a
exclusão social é imposta aos que não têm direitos.
Aos poucos, um contingente crescente de “vagabundos” ou “marginais” como
costuma ser taxado o Povo da Rua tornou-se maior e passou a incluir pessoas de
todos os sexos e/ou identidade de gênero, idosos, pessoas com deficiência,
adolescentes e crianças. Vítimas do sistema moderno onde pessoas humanas só
valem o que produzem.
A pobreza involuntária, como identifica Cortina, é
consequente da desigualdade imposta pela lógica do mercado, mas também das
práticas e moral social excludentes, resultantes e/ou associados a preconceitos
e estereótipos. Os mendigos ou vagabundos de ontem, eternamente invisibilizados
ou culpabilizados, são chamados hoje de pessoas em situação de rua. Durante a
pandemia, juntaram-se a eles os sem trabalho, apenas entre os desalentados, pessoas
que desistiram de procurar um emprego formal, somando mais de 5 milhões de
brasileiros no final de 2021.
Acreditamos que o processo de globalização, agravado pelas práticas do
neoliberalismo, potencializaram a segregação urbana. Para milhares de
brasileiros, a modernidade não aconteceu, e mesmo na capital econômica do
Brasil só restam às ruas, as calçadas, as pontes e os viadutos como proteção. Nesse
ambiente, muitos perdem as referências de lar, de trabalho, de sociedade e
identidade.
E, ao abrirmos mão do
princípio da Alteridade, não reconhecemos nessas pessoas algo de nós,
afastando-nos e os afastando. A ausência de empatia que impede o reconhecimento
do outro e o conhecimento de nós mesmos.
Nesse cenário, todos
somos “estranhos”. Principalmente durante os primeiros 21 meses da pandemia da
Covid-19, quando a maioria de nós foi obrigada a manter isolamento social e
muitos de nós não se comoveram com aqueles que vivem nas ruas. Inclusive, por
isso, o número de trabalhadores como prestadores de serviços domésticos e
diversos perderam as suas fontes de renda, impactando inúmeras famílias,
inclusive as que tiveram de inverter a lógica do isolamento social, pois
tiveram de sair de suas casas e foram morar nas ruas.
Acreditamos que esse
fenômeno do isolamento, às avessas, impacta sobremaneira na identidade pessoal
ou até mesmo na formação da identidade. Nas ruas, as pessoas perdem os vínculos,
e as relações formadas na tentativa de garantir a sobrevivência costumam ser
tênues e passageiras. Nos abrigos, os casais são separados, na lida do dia a
dia as pessoas em situação de rua migram dentro dos espaços urbanos, com
exceção a ambientes que envolvem algum tipo de trabalho ou dependências
diversas. Por exemplo, a região da chamada “cracolândia”, em São Paulo, em que dependência
química e comércio de drogas se retroalimentam.
Entendemos, ao longo
desta pesquisa, que o “mito da modernidade”, quando nos foi prometido o
“paraíso do consumo” continua gerando a desigualdade e enriquecimento desumanos
na maior parte da população mundial. Desse contexto histórico também foi gerado
o “encobrimento do outro” que, a nosso ver, atinge sobremaneira a população em
situação de rua.
Apesar de correntes
diversas de pensamento de Dussel se comparado ao de Bauman, consideramos que
ambos corroboram para o nosso estudo. Um pelo conceito do mito da modernidade
histórica envolta no processo exploratório da América Latina, e o outro
sinalizando a modernidade tardia vivida pelo povo latino-americano.
O povo da rua também
é fruto desse contexto cruel, economicamente e socialmente falando. Durante a
pandemia, a realidade vivida por eles se agravou, primeiro isolando-os
geograficamente falando e, depois, afastando-os do convívio social.
Com este artigo,
pretendemos fomentar o debate em torno do povo oprimido. Se antes eles somavam
os explorados pelo mercado de trabalho, hoje, são ignorados pelo sistema
econômico, encobertos e apagados em sua cultura e identidade.
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