quinta-feira, 30 de março de 2023

É preciso celebrar a mulher que me tornei - Nasci mulher? Sim e não. Escolhi ser

 

Arte da capa, fonte APD

 Na minha certidão de nascimento, há sessentanos, estava   estabelecido: sexo feminino. E, com o passar dos anos, fui me   acostumando à condição de mulher.

 Na infância, brincava com boneca e cumpria o papel de boa   menina; na adolescência, a rebelde de todas as causas; adulta,   os desafios da condição feminina sempre em transformação... 

 Hoje, tenho a certeza de que o caminho individual parte do   coletivo. E não há tempo a perder nessa lida pela valorização da   mulher e da pessoa humana.

 Eu nunca aprendi a cozinhar, limpar a casa e até hoje peleio com   essas tarefas. Faço-as por escolha, pois não quero outra mulher   fazendo por mim. Talvez comigo. Prefiro tê-las ao meu lado para   uma boa troca e prosa


Nos anos 1980 cantávamos algumas de nós: “oh, mãe, o que é ser menina?”* Respondo agora: é ser e estar aonde quisermos, sempre prontas para os confrontos ao transpor barreiras físicas, sociais, intelectuais.

Na minha geração aprendemos a defender o que somos. No meu caso: mulher cis, profissional, feminista, ativista de esquerda. . Não fui criada para ser mãe, mas para ser mulher independente, profissional, livre. Quem dera... Mas a minha trajetória constantemente me prega peças, e o meu melhor papel é justamente ser mãe de dois filhos.

Não a mãe perfeita, mas a que ama e respeita as escolhas da prole, incentivando-os a serem homem e mulher de suas gerações.  A ele ensinei respeitar o não, a ela que o sim é uma escolha pessoal e intransferível. Aprendi muito mais do que ensinei com eles...

Com o passar dos anos, testemunhei que ser mulher é mais do que ser diversa: é ser única. Sendo minoria somos maioria. Sendo diferentes, podemos e devemos ser unidas. Afinal, não poderemos ser felizes enquanto algumas entre nós ficarem para trás.

Descobri que a minha condição de mulher branca sempre me trouxe privilégios de que não tinha consciência. Entender o limite que desconhecia ao carregar uma culpa ancestral não é fácil de carregar, mas fazer parte da mudança me motiva. Cabe a todas, cada qual com a sua luta individual, pensar o coletivo.  

No momento, a lida é pelo etarismo. Confesso que não assimilei certos engajamentos relativos ao conceito. Mais uma vez, sou privilegiada por envelhecer bem, com saúde, produzindo e me atualizando ao desafiar o passar dos anos.

O desafio é ter a consciência de que nem todas tiveram a oportunidade de envelhecer de maneira saudável. Muitas são assassinadas, reclusas em situação de cárcere, abandonadas em situação de rua, restritas em ambientes asilares, exploradas em cárcere privado e ou discriminadas por serem mulheres com deficiência. Saúdo as idosas que criam os netos ou sustentam os familiares com os escassos recursos da aposentadoria. As matriarcas que multiplicam saberes, culturas, afetos.

Os desafios não muitos: a valorização profissional, salarial; o combate à violência de gênero e política; o direito às escolhas como ser uma mulher lésbica ou assexuada, ter um filho natural ou adotar, não ter filhos. Ser respeitada pela nossa individualidade.

Assim fui construindo a minha consciência crítica, cidadã, comunicacional. Engolindo sapos, mas tornando-me cada vez mais uma mulher de meu tempo.

Otimista, acredito na diversidade humana e que homens, mulheres, pessoas transgêneros serão, um dia, capazes de conviver com equidade. A diversidade de que me deixa tranquila ao ter escolhido ser mulher como nasci. Protagonista de mim mesma.

Neste #8M, marcado no calendário como o Dia Internacional da Mulher, lembro ser um dia de luta, mas também de memória e festa. Data para homenagear cada mulher que me abriu os caminhos e por aquelas que sucumbiram nessa jornada.

Orgulhosa da minha condição feminina, eu sigo a minha lida pessoal e coletiva pela valorização de todas, todos, todes, ao mesmo tempo em que não sejamos prejudicadas pela condição de ser mulher.  Pensando o que posso fazer hoje por outra mulher?

Machismo mata, assédio marca, misoginia maltrata, falta de sororidade exclui. Sobretudo neste Sul Global onde vivemos e parte da sociedade acostumou-se à herança colonialista, machista, capitalista.

Pronta para enfrentar os desafios como mudança desejada, dedico a cada mulher que ler este texto a canção:

Herança de Caminhar, Carol Andrade, 2022

“O mundo anda prá frente, não tem como segurar... tem lição para aprender... O futuro mandou avisar: agora é nossa hora, ele vai nos cobrar.”

https://www.youtube.com/watch?v=xqHQlLzCP7o

 

*Jornalista profissional (MTb16447), doutoranda em Comunicação Social pela UMESP

**Feminina, Joyce Moreno, 1980

Para baixar e ler todos os artigos:

Breves Artigos - Caderno Especial #DiaInternacionaldaMulher 2023

https://apd.org.br/breves-artigos-caderno-especial-dia-internacional-da-mulher-2023/






 

sexta-feira, 24 de março de 2023

"Vai durar pouco..."

Foto da Autora
Do exílio voluntário, ex-presidente Bolsonaro fomenta o projeto de extrema direita no Brasil

Há alguns anos eu escrevi que o ex-presidente do Brasil havia desvelado o pior do povo brasileiro. 

Com ele, a Pátria amada virou “armada”, a intolerância se aguçou num país antes conhecido pela sua simpatia. 

Ele atacou as instituições e atiçou lenha na fogueira das paixões ideológicas. 

Desvelou a falta de cultura histórica e política, principalmente da classe média que se acha melhor do que os pobres e os trabalhadores, sonhando com o patamar econômico inalcançável dos milionários made in Brazil.

A polarização entre da sociedade brasileira não foi revelada pelo ex-presidente, mas por ele. Em resposta ao movimento de oposição #EleNão, encabeçado pelas mulheres e incorporado pelos movimentos sociais e de esquerda, em 2018, eclodiu uma mobilização contrária. 

Os manifestantes pró Bolsonaro presidente foram às ruas vestindo as cores verde e amarela e a camisa da seleção brasileira. Desde então, as relações familiares foram abaladas pela política nacional num país onde boa parte da população se orgulhava em dizer que política não se discute.

Durante os quatro anos que ocupou o poder executivo, Bolsonaro promoveu a herança colonial, patriarcal e capitalista, estudada por Boaventura de Sousa Santos (Epistemologias do Sul). O sucesso nas urnas visibilizou a aversão de parte da sociedade pelo Partido dos Trabalhadores e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

O número de eleitores que afirmaram não serem representados pelo homem de origem humilde, migrante, amputado (devido a um acidente de trabalho) e ex-“presidiário” evidencia o preconceito fundamentado por estereótipos. Lula foi vítima da “competência” de Bolsonaro em somar seguidores. Mas, o que parte dos brasileiros não tolera é o seu passado de sindicalista. O que os ultradireitistas, erroneamente, associam ao comunismo.

Metade dos brasileiros não têm escrúpulos em apoiar um político de carreira, que elogiou um torturador em pleno Congresso Nacional e está envolvido a inúmeras denúncias. Principalmente, relacionadas ao descaso com a vida humana e sua ligação com transações econômicas e personalidades de moral duvidosa.

Enquanto aguarda visto de turista nos Estados Unidos (entrou como autoridade de Estado), Bolsonaro se fortaleceu com o uso das mídias sociais, desencadeando o fenômeno da desinformação e o discurso de ódio. Como a internet não tem fronteiras, ele continua fomentando informações em seu exílio voluntário.

Bolsonaro afirmou que o governo popular do Brasil “vai durar pouco”. Coloca-se candidato à reeleição enquanto o partido que o apoia, o PL, sinaliza uma possível candidatura de sua esposa, Michele Bolsonaro. Ela retornou ao Brasil, aos palanques e às manchetes.

Apenas uma comunicação popular, assertiva, associada à comunitária, cidadã e militante, poderá minimizar o impacto dessa rede de intrigas. Será uma guerra política, ideológica, mas também de retórica.


"Va a durar poco"


Desde el exilio voluntario, el expresidente Bolsonaro fomenta un proyecto de ultraderecha en Brasil


Hace unos años escribí que el ex presidente de Brasil había desvelado lo peor del pueblo brasileño. 

Con él, la Patria Amada se volvió "armada", la intolerancia se agudizó en un país antaño conocido por su amabilidad. Atacó a las instituciones y avivó el fuego de las pasiones ideológicas. 

Ha revelado la falta de cultura histórica y política, especialmente entre las clases medias que se creen mejores que los pobres y los trabajadores, soñando con las inalcanzables alturas económicas de los millonarios made in Brasil.


La polarización de la sociedad brasileña no fue revelada por el ex presidente, sino por él mismo. En respuesta al movimiento de oposición: #EleNão, encabezado por mujeres e incorporado por movimientos sociales y de izquierda, en 2018 estalló una movilización contraria. 

Los manifestantes a favor del presidente Bolsonaro salieron a la calle con los colores verde y amarillo y la camiseta de la selección brasileña. Desde entonces, las relaciones familiares se han visto sacudidas por la política nacional en un país donde gran parte de la población se enorgullecía de decir que no se hablaba de política.

Durante los cuatro años que ocupó el poder ejecutivo, Bolsonaro promovió la herencia colonial, patriarcal y capitalista estudiada por Boaventura de Sousa Santos (Epistemologías del Sur). Su éxito en las urnas hizo visible la aversión de una parte de la sociedad por el Partido de los Trabajadores (PT), y el Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

El número de votantes que dijeron no sentirse representados por el hombre de origen humilde, emigrante, amputado (debido a un accidente laboral) y antiguo "preso" muestra los prejuicios basados en estereotipos. Lula fue víctima de la "competencia" de Bolsonaro para sumar adeptos. Pero lo que una parte de los brasileños no tolera es su pasado como sindicalista. Lo que los ultraderechistas asocian erróneamente con el comunismo.


La mitad de los brasileños no tiene reparos en apoyar a un político de carrera, que elogió a un torturador en el Congreso Nacional y está implicado en numerosas acusaciones. Principalmente relacionado con el desprecio por la vida humana y su conexión con transacciones económicas y personalidades de dudosa moralidad.

A la espera de un visado de turista en Estados Unidos (entró como autoridad estatal), Bolsonaro se ha reforzado con el uso de las redes sociales, disparando el fenómeno de la desinformación y el discurso del odio. Como Internet no tiene fronteras, sigue fomentando la información en su exilio voluntario.

Bolsonaro ha afirmado que el Gobierno popular de Brasil "durará poco". Se ha presentado a la reelección, mientras que el partido que lo apoya, el PL, ha señalado una posible candidatura de su esposa, Michele Bolsonaro. Ha vuelto a Brasil, a los escenarios y a los titulares.

Sólo una comunicación popular, asertiva, asociada a la comunidad, ciudadana y militante, podrá minimizar el impacto de esta red de intrigas. Será una guerra política, ideológica, pero también retórica.

(Versão em espanhol por Sandra Sena)

 

 

quinta-feira, 23 de março de 2023

Se não vender ele come... Ou morre de fome?



Foto: Adriana do Amaral


Mais uma vez um homem em situação de rua. Desta  vez, com pouco mais  de 20 anos. 

Este menos limpo, menos bem vestido, mas muito articulado. Nas  primeiras horas da manhã ele já estava de pé e me abordou na frente de uma loja de doces. 

"Oi, tudo bem? Posso falar com você? Não, não vou  pedir dinheiro, nem comida. Podemos conversar um  pouco?"

Pergunto o seu nome, ele responde. Vou chamá-lo  aqui de R. 

"Eu moro na rua e apenas queria pedir que você me  ajudasse comprando um doce para que eu possa  trabalhar". 

Com a minha resposta assertiva, ele corre na loja - talvez com medo que eu desistisse ou pechinchasse o produto mais barato. Vai direto na caixa de paçoquinha e volta para mim, que o espero no caixa sob a perplexidade da balconista.

Eu respondo: 

"Você é bom, hem? Escolheu o produto que todo mundo gosta. Venda na certa".

"É verdade", responde. "Todo mundo gosta de paçoca".

Enquanto esperávamos para consolidar a venda, com o pagamento, dialogamos. Ele contou-me que foi morar na rua porque cansou de ver a mãe ser agredida e também apanhar do pai. Lembrou-me um jovem que entrevistei nos anos 1990, outra história de violência doméstica, dor e abandono...

"Um dia eu eu meu irmão nos reunimos, demos uma surra nele, e o expulsamos de casa. Minha mãe está ótima: colocou os dentes de volta e até está namorando."

Ao ser questionado sobre o porquê não voltou a morar com ela, argumentou:

"Uma vez sem casa, na rua, ninguém tira a rua da gente", testemunhando que após viver ao relento, para ele seria inviável voltar para quatro paredes...

Antes de nos despedirmos eu pedi uma paçoquinha, contando que é o meu doce favorito. Ele quis me dar três, eu respondi que não, queria apenas uma e ele precisava do dinheiro das vendas.

Voltando para os meus afazeres, pensei: 

R teria de convencer 50 pessoas para, com muita competência e sorte, vender 49 doces. A primeira pessoa convencida fui eu.

Hipoteticamente pensando em R$1 por paçoca ( talvez ele ofereça duas por este valor) imagino o trabalhão para ganhar R$49, isso se a fome não bater e ele comer algumas. Lembrando que para uma pessoa em situação de rua é bem mais difícil a abordagem, frente à rejeição.

Eu sempre compro paçoquinhas dos ambulantes. Para ajudar e saborear. 

No dia seguinte comprei duas paçoquinhas de uma moça no Metrô. Ela contou-me que era mãe de um bebê e, desempregada, vendia doces para alimentar a filha. Nos dias bons conseguir vender, no máximo, 40 paçoquinhas. Isso, com grande esforço: andando, dialogando e correndo o risco de o rappa ou os seguranças reterem a mercadoria, vendida sem licença.

Angustiada, pensei comigo: a vida não é nada doce!


                                           Compre de ambulante! Isto pode significar sobrevida.

                                                        #trabalhodecenteprátodaagente

terça-feira, 21 de março de 2023

O Pão Nosso de cada dia nos dai hoje - e amanhã e todos os dias

Seu Ivan, meu pai (foto: arquivo familiar)
Hoje é o Dia do Pão. 

Mas dia 21 de março deveria ser todos os dias, não é mesmo?

Eu nasci numa padaria, literalmente (na verdade, no quarto dos meus pais, que ficava na casa onde ficava o comércio). Passei a minha infância nesse ambiente, em duas cidades diferentes: Porto Feliz e Boituva, no interior de São Paulo.

O cheiro, o sabor dos pães, doces e salgados, talvez sejam a minha memória culinária mais forte. Também, nunca me esquecerei dos testemunhos das histórias de vida cotidiana que permearam a troca entre o pão e a moeda.


Nos balcões da Padaria Santa Maria, que celebrou cem anos de atividade em 2022, antes de encerrar as suas atividades, aprendi a minha "palavramundo": troca. Foi lá que a minha história de vida começou; onde aprendi a ouvir e falar e dialogar e ler os jornais no balcão.

Nesses tempos em que a fome ronda o nosso país e é preciso resgatar a generosidade do povo brasileiro em partilhar o pão, deixo aqui a minha homenagem aos padeiros, na figura de meu pai. 

Reproduzo, abaixo, uma história vivida que conta um pouco de como, nos anos de 1960/1970, as vidas fermentaram e cresciam em torno do simples ato de saborear um pão fresco, "quentinho, feito a toda hora". 

As padarias, então, eram pontos de referência! Assim como os padeiros líderes comunitários.

Que não falte "pão em todas as mesas".

#Diadopão

Um tal de Tarcísio Meira

Meu pai, comerciante da cidade do interior paulista, enquanto viveu não cansava de contar essa história:

Em tempos que cédulas e moedas circulavam pouco e os serviços bancários eram restritos, quando ter uma conta bancária era privilégio de alguns e não haviam cartões, agências 24 h, pixs e transações via internet, meu pai, curiosamente, atendia aos pedidos dos pequenos e grandes clientes que precisavam de dinheiro vivo. Eram épocas da famosa gaveta, que armazenava as notas.

Naquele dia, um de seus "fregueses", da Padaria Santa Maria, veio pedir para que ele trocasse em cheque. Ele havia prestado um serviço de manutenção e recebido o pagamento em forma de cheque e não tinha como descontá-lo.

-Seu Ivan, o senhor faz o favor de trocar este cheque por dinheiro para mim? Não sei se o senhor conhece o meu patrão. É um tar de Tarcísio Meira!

O meu pai, que preferia os seriados e filmes de bang-bang às novelas que passavam no mesmo horário (nobre da televisão), no entanto, admirava o personagem da trama dos Irmãos Coragem. Na época, o casal Glória Menezes e Tarcísio Meira estava construindo a sua casa entre as cidades de Porto Feliz e Itu, na vizinha Boituva.

Eu sempre ria com o meu pai quando ele repetia a façanha: um pedacinho do famoso ator nas mãos dele... E dizia:

Imagine se alguém não conhece o Tarcísio Meira?

O galã que ousou morrer gala, com seu sorriso lindo e bochecha à lá personagem de Maurício de Souza? Eu, que nunca assistir novelas, sempre admirei o moço bonito, que soube honrar a sua parceira até o fim, nessa quinta-feira (12/8/2021), vítima desse vírus maldito, o coronavírus.

Oh, Glória! Oitenta e cinco anos de vida pública!

Oh, Glória! como serão agora os seus dias sem o seu par perfeito?

A mocinha de tantas histórias, atriz soberana que soube se reciclar com os passar dos anos conservando a beleza de musa... Ela sobreviveu à Covid-19, ficando ao lado do amado amante até o fim?

Lamentar uma morte nesse momento em que a pandemia parece estar sendo ignorada por tantos, apesar de apenas na véspera terem morrido 975 brasileiros, parece ser contraditório. Lembro que apenas cerca de 25% dos brasileiros estão totalmente imunizados, e ainda não sabemos, idealmente, qual será a cobertura das vacinas frente às variantes do coronavírus.

A tristeza só aumenta quando pensamos que a contaminação acontece, geralmente, por descuido. Afinal, a Covid-19 não descansa frente ao nosso comportamento farto dos protocolos sanitários.

Além disso, os sintomas mais leves entre os vacinados nem sempre têm o diagnóstico confirmado... E a contaminação acontece.

Irmãos, nesses anos pandêmicos é preciso ter muita coragem.

Voltando à morte de Tarcísio Meira, ele poderia ter vivido um pouco mais...

Voltando à história vivida e contada por meu pai:

Pena que ele não guardou o cheque...



terça-feira, 14 de março de 2023

A alma de Fernão Dias deve ter virado no túmulo...

Arte: Onézio Cruz

 Tarcísio tenta matar a memória do Patrono da Educação brasileira,   Paulo Freire, e para isso ressuscita um bandeirante. Fernão Dias   representa o passado presente na mente do governador. 

 O   capitalista  de hoje remete à memória do   colonizador/explorador  de   ontem. O   herdeiro eleito pelo   bolsonarismo retrógrado, mais uma  vez, mostra  a que veio: para   lembrar que da sua mente e martelo o  bolsonarismo sobrevive no   poder.

 O migrante Paulo Freire mudou-se para São Paulo para   revolucionar  o ensino. O imigrante Fernão Dias veio para São   Paulo para a explorar. O migrante governador mudou-se para São   Paulo para entrar na política e fazer do Estado "cabide de emprego". 

 Ele não é daqui, não conhece a cidade nem o Estado, sequer   imagina o que Paulo Freire fez enquanto Secretário Municipal da     capital paulista. Não conhece o Instituto Paulo Freire, sediado na   cidade de São Paulo, e talvez nunca tenha lido um dos seus livros.

 Por tudo isso, ele atropela o bom senso? Ou apenas estaria  reforçando a que veio? Só sei que tem feito mal. Muito e mau-feito.

Oficialmente, o nome do educador teria sido preterido ao do caçador de esmeraldas e exterminador de indígenas. A estação de Metrô (linha 2, estatizada), ficará, depois de pronta, na Avenida Educador Paulo Freire, nas proximidades da rodovia Fernão Dias.

A estação, que seria nomeada de Paulo Freire, pode até mudar de nome, porque o governador tem a caneta. Mas, você passará, e muito rápido. Será esquecido ou lembrado pela mazelas que tem causado com a política privatizadora e excludente. 

Ignorante que é, governador, você está escrevendo uma história baseada em polêmicas, jamais em evidências. Paulo Freire, por outro lado, embora tenha nascido há cem anos, vive em sua obra, em suas memórias, na história que testemunhou, vivenciou e escreveu.

Abaixo, uma matéria de arquivo, que redigi para a celebração do centenário de Paulo Freire: o meu "crush" intelectual, confesso.


Do Brasil para o mundo: a universalidade do indivíduo

 

Eu e o eterno Paulo Freire

 Cada tempo imortaliza um gênio.  Hoje, 19 de   setembro de 2021, celebramos os 101 anos do   Patrono da Educação Brasileira: Paulo Freire. 

 O brasileiro que ensinou ao mundo que   educação requer troca: de experiências, de   histórias de vida, de motivação, de metas, de   ideias e ideais, de sonhos.

 Paulo Freire foi muito além ao criar um método   de ensino. Ele desenvolveu um novo conceito   

 na práxis pedagógica alicerçada no compartilhar libertário onde a relação entre professor alunos e colegas se equivalem em importância e não cabe o individualismo. Aprendizado que nasce da compreensão do saber com outro, e tem como didática o compartilhamento de experiências.

A prática dialógica, onde a aquisição da leitura e escrita é iniciada com a  compreensão da realidade individual só é possível devido à participação do grupo. A sala de aula se transforma em um ambiente multiplicador, facilitando a aprendizagem coletiva. De fato e direito.

É a chamada leitura do mundo. Saber construído no cotidiano. Onde a cultura individual é vista como um ativo e é considerada a vivência do grupo. Afinal, é conversando que a gente se entende, não é mesmo?

O mestre nos ensinou que ninguém aprende sozinho, e que “os homens se libertam em comunhão”. Uma visão que valoriza o indivíduo ao evidenciar a sua ação coletiva. Sobretudo, do entendimento sobre a opressão, que é o ponto de partida para a libertação e a emancipação social. Fundamental no passado e imprescindível na atualidade.

Ler a obra de Paulo Freire é descobrir um universo cujas ideias provam que há motivos para acreditar no ser humano. Atemporal, ele emancipou a pessoa humana ao defender que as respostas estão nelas próprias, mas a construção de uma sociedade diversa e mais igualitária requer o convívio inerente às relações interpessoais.  Um saber construído a partir da palavra, do diálogo, da reflexão e, por que não, do empoderamento.

Quando a troca é estimulada por perguntas elas geram respostas. E assim, quando o diálogo é possível, a reflexão acontece naturalmente. Paulo Freire encontrou um caminho que leva à compreensão da realidade comum, permitindo assim a consciência que emancipa e promove projeto a ser conquistado.

Do Brasil para o mundo

A obra de Paulo Freire é literatura, conteúdo e referência para a leitura do mundo em todos os tempos e vividos. Principalmente, numa época da realidade brasileira onde a dualidade de pensamento divide as opiniões e cria abismos culturais quase intransponíveis para os brasileiros divididos entre as próprias prioridades, com projetos antagônicos de construção de uma nação. A polarização que segrega, desconstrói e impede o desenvolvimento coletivo.

Um dos autores mais traduzidos e dentre os homens mais homenageados em todo o mundo na atualidade, é o terceiro teórico mais citado em trabalhos acadêmicos da área de Humanas. Paulo Freire acumula mais de 20 títulos concedidos por instituições de ensino nacionais e internacionais e mais de 30 títulos de Doutor Honoris Causa. Chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel pela importância do conjunto da obra, com mais 20 livros que deixou como legado de 75 anos de vida.

Foi considerado Educador pela Paz, em 1986, pela ONU -Organização das Nações Unidas- e Educador dos Continentes, pela OEA -Organização dos Estados Americanos-, em 1992. Em 2012 foi declarado o Patrono da Educação Brasileira (Lei Federal No 12.612/2012), no governo da presidenta Dilma Rousseff.

O reconhecimento internacional virou marca, contudo Paulo Freire nunca foi unanimidade no país que nasceu. Foi assim no passado e é agora, no presente. Mas ele viveu e deixou o seu pensamento para incomodar. Ou melhor, questionar, a partir do antagonismo e as semelhanças, sempre pensando, como ele dizia, nos “esfarrapados do mundo”. Um brasileiro que teve a sua liberdade cerceada ao ser considerado comunista e subversivo no período da ditadura militar. Contraditoriamente, um homem católico.

Depois de ser preso por 72 dias, foi expulso na condição de exilado político. Em 1964 foi obrigado a se ausentar do país onde nasceu e amou a vida inteira, só retornando em 1980, um ano após a Lei da Anistia. Foi obrigado a deixar o Brasil, mas o Brasil nunca o deixou...

Conheci exilados assim. Amargurados, tristes, mas fieis ao sonho político por causa do qual foram desenraizados. Não me lembro de ter conhecido um, sequer, que tivesse se arrependido da utopia por causa da qual, lutando, terminou no exílio. [1]

Após breve estada na Bolívia, viveu no Chile, Estados Unidos, Suíça e teve passagens por países da África onde expandiu sua prática, pesquisas e pensamentos. Trabalhou no Instituto Chileno para Reforma Agrária; foi professor visitante na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos; consultor do Conselho Mundial das Igrejas em Genebra, Suíça e um dos fundadores do Instituto de Ação Cultural, voltado para a educação pela independência. Dentre os inúmeros feitos levou o método Paulo Freire para a Guiné-BIssau. Ao retornar ao Brasil estabeleceu-se em São Paulo, onde foi professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e atuou na construção do Partido dos Trabalhadores.

A memória de Paulo Freire está envolta em fakenews – as chamadas notícias falsas – além de debates retrógrados, na tentativa de deturpar suas teorias. Ofensas que remetem aos anos de chumbo da história do Brasil, gerando confusão de pensamento num momento crucial onde o entendimento das ideias freirianas nos arma de ideias. Felizmente, os admiradores são em número maior do que seus desafetos e uma palavra criada por ele, Boniteza, norteia o programa de governo do Partido dos Trabalhadores, numa justa homenagem ao centenário.

Inspiração para a vida toda

Conheci Paulo Freire ainda adolescente ao ler “O que é o Método Paulo Freire”, da coleção  “Primeiros Passos”, editado pela Editora Brasiliense, nos anos 1980. A obra explica, resumidamente, o que é sistema de ensino a partir das palavras geradoras. Lembro-me de ficar encantada com o poder delas ao serem extraídas da vivência dos alunos e catalisadoras da arte das letras. Também, de tê-lo indicado inúmeras vezes, como facilitador na educação de adultos numa opção às tradicionais cartilhas.

Anos mais tarde, tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Ele estava prestes a assumir o cargo de Secretário Municipal de Educação do governo popular do PT, na gestão da prefeita Luiza Erundina. Assumiu em 1989, mas deixou o cargo em 1991. A mídia hegemônica e os desafetos tentaram podar as asas do professor/secretário, que deixou um legado invejável de realizações, enquanto gestor. Eu o visitei em seu apartamento, em São Paulo, após agendamento com a sua primeira esposa, Elsa.

Como eu gostaria de voltar no tempo e poder reviver esse momento! Como deve ter tido paciência o professor ao dialogar com a jornalista inexperiente de então… Dizer como ele se tornou importante para a minha vida pessoal e profissional.

Na época, São Paulo teve a oportunidade de pensar um novo modelo de educação, idealizada por um advogado em primeira formação, mas que se tornou o mais importante professor do Brasil. A capital paulista deixou de retomar a história de luta pela alfabetização que foi interrompida pela ditadura militar.  A experiência que ficou conhecida como “Quarenta Horas de Angicos”, e que permitiu aos trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, no Rio Grande do Norte a lerem e escrever.

Historicamente falando, foi quando a educação freiriana ganhou corpo. A aplicação do projeto-piloto reuniu 380 trabalhadores da base da pirâmide social. Era o ano de 1963 e às 40 horas-aulas foram divididas em 45 dias. A última delas, ministrada no dia dois de abril, foi assistida por ninguém menos do que o Presidente da República na época, João Goulart. Ele testemunhou o desenvolvimento dos alunos, inclusive que escreveram e leram o discurso de formatura.

Não havia material didático pronto. Tudo foi construído coletivamente. A realidade do lugar foi pesquisada pelos professores, estudantes universitários que doaram o seu trabalho voluntariamente durante as férias escolares por acreditar no projeto. Foram selecionadas 410 palavras geradoras, extraídas a partir da rotina dos alunos, respeitando a cultura do lugar e dos então analfabetos. As aulas baseavam-se em conversas que norteavam discussão sobre a vida, o trabalho e a sociedade. De uma palavras surgiam outras, que tinham a mesma raiz ou sentido, aumentando o universo vocabular e a compreensão da escrita.

O “Método Paulo Freire” divide-se em investigar, tematizar e problematizar, em sala de aula. Através do vocabulário, o professor conduz o trabalho, relacionando o contexto ortográfico e realidade.  O professor é o facilitador, mas os alunos os protagonistas. Dinâmica que gerava a politização e o pleno exercício da cidadania a partir da circularidade do pensar.

A vivência em Angicos serviria de modelo para um novo Programa Nacional de Alfabetização, que seria aplicado a partir de 1964. A experiência iria ser multiplicada em todo o país, beneficiando cinco milhões de adultos. Pelo menos, era a intenção do governo de então. Mas a conscientização dos trabalhadores levou a uma greve, que desagradou aos senhores de engenho.

A pedra no meio do caminho foi lançada no dia dois de abril de 1964. Toda a equipe foi presa e os alunos, com medo da repressão, queimaram todo o material produzido. Paulo Freire foi banido de sua Pátria. Mas quem consegue apagar a história? O professor ganhou o mundo, assim como o seu respeito.

Retorno ao país natal

De volta ao Brasil, Paulo Freire trouxe na bagagem o convívio com diferentes realidades e culturas. O que além de expandir o seu pensamento de cidadão e intelectual o fez compreender ainda mais a realidade brasileira. Para ele, cultura não se discute, mas se aceita.

O livro “A Sombra desta Mangueira”, publicado em 1985 e reeditado em edição comemorativa em 2013 (com revisão e notas de sua segunda esposa, Ana Maria Araújo Freire) permite-nos conhecer um pouco mais o cidadão e ser humano Paulo Freire. O livro atualiza o principal reconhecimento ao trabalho do intelectual.

Um homem de fé, que chegou a passar necessidades e apenas não passou fome, segundo ele, devido às frutas de época, fartas na sua infância, Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro do ano de 1921, na cidade Recife, Pernambuco. Um menino que fez do próprio quintal um templo de contemplação, e que influenciou os pensares do mundo a partir do adulto que se transformou. Reproduzo aqui as palavras do professor Paulo Freire, no livro, e que evidencia a sua escolha de vida pela promoção da emancipação política, social e econômica e cultural da pessoa humana:

A paixão com que conheço e com que falo ou escrevo não diminuem em nada o compromisso com que denunciou ou anuncio. Eu sou uma inteireza e não uma dicotomia.

Ele denuncia:

A minha terra é dor de milhões, é fome, é miséria, é esperança também de milhões igualmente famintos de justiça, porque a Terra da gente envolve também o processo de luta por sonhos diferentes, às vezes antagônicos, como os de suas classes sociais.

Mas a vida é assim mesmo. O diálogo, defendido à exaustão por Paulo Freire, nos faz avançar, regredir, progredir e insistir. Lições para toda a vida, gerações após gerações. Uma luta diária para não permitir ao dominador o direito de esmagar o dominado. Sobretudo, na prática da política que de quando em quando se aplica como acontece nesse início dos anos 2020, de combater a despolitização da educação.

Pois, não podemos nos esquecer:

Educação precisa tanto da formação técnica, científica, profissional quando do sonho e da utopia.

O que, para Paulo Freire, não é possível em “aliança com a direita”.

Saberes múltiplos e diversificados

Seus livros nos apontam o desenvolvimento dos saberes freirianos a partir das vivências e acúmulo de experiências trocadas. A partir da escrita e publicação, em ordem cronológica, a obra de Paulo Freire descortina o universo cidadão relacionado à construção do saber. Leitura que não envelheceu com o tempo, e sim nos estimula e gera uma vontade de aprender e ensinar, tocar e trocar. Eles nos sinalizam caminhos de construção.

A tese apresentada para o concurso da cadeira de História e Filosofia da Educação da Escola de Belas Artes de Pernambuco, em 1959, já sinalizava quem seria Paulo Freire. Educação e Atualidade Brasileira critica a prática da educação bancária e lança as sementes da educação como ferramenta de mudança na busca da promoção do indivíduo e sociedade. Já a Propósito de uma Administração, de 1961, reavalia ações dos tempos que o autor participava da administração da Universidade do Recife (atualmente Universidade Federal de Pernambuco). Dois anos depois, em Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo, ele defende a sua visão sobre a educação libertadora e conscientizadora como alternativa aos métodos tradicionais de ensino.

Na condição de exilado político, em 1967, pela prática da educação dialógica, escreveu, em terras chilenas, Educação como Prática da Liberdade. Um ano depois lança Pedagogia do Oprimido, a obra-prima onde defende a práxis pedagógica e repudia a doutrinação. Livro que se tornou referência mundial.

Em Ação Cultural para a Prática da Liberdade e Outros Escritos, de 1970, avalia a realidade brasileira a partir de seu olhar crítico. A leitura de Cartas à Guiné-Bissau, de 1978, nos leva a conhecer a internacionalização da experiência da aplicação da metodologia de ensino criada por Paulo Freire. A partir da experiência na África, e através da troca de correspondência, em 17 cartas, é possível ler detalhes da experiência no diálogo entre o autor e seu interlocutor, Mário Cabral, na época Comissário de Educação e Cultura de Guiné-Bissau.

Na obra Os cristãos e a libertação dos oprimidos, de 1978, Paulo Freire aborda a questão da liberdade religiosa, tão debatida nos dias de hoje com os avanços da intolerância. Nascido em família de fé diversa, ele aponta como a formação religiosa que recebeu, no seio da própria família, foi o ponto de partida para, mais tarde, como educador, refletir sobre suas ideias e a forma como se relacionou com a diversidade humana. Ironia do destino ele ter sido banido do Brasil com a alcunha de comunista, não é mesmo?

Em 1979 analisa, em Extensão e Comunicação, a informação em meio à sociedade agrária a partir da realidade tão distinta como as vivências dos técnicos e os camponeses se comparado ao professor e o aluno. Já a universalização da experiência de Angicos, provando que o modelo criado no Brasil pode ser replicado em qualquer realidade, é retomada em A Importância do Ato de Ler em Três Artigos que se Completam, relatando, em 1982, detalhes da experiência pedagógica em São Tomé e Príncipe. Educação e Mudança, de 1979, relata pensares da construção de um novo Brasil que vivenciava o início da abertura política, evidenciando as relações do homem frente à realidade. Ao longo de toda a sua obra, Paulo Freire sempre retoma a importância da leitura na alfabetização de adultos.

A questão dialógica reaparece em Por uma Pedagogia da Pergunta, escrita em forma de conversa com o filósofo chileno Antonio Faundez, em 1985. Através do compartilhamento de experiências, eles defendem a prática do “repensar constante”. Uma temática que Paulo Freire retoma em Pedagogia da Esperança, de 1982, que é uma releitura em forma de atualização do que foi abordado em Pedagogia do Oprimido. Uma espécie de reaprendizado analítico de trinta anos de construção de ideias e trabalho realizado.

Paulo Freire sempre foi generoso na troca dialógica com os co-autores, companheiros de jornada que encontrou pelo caminho da vida. Muitas respostas sobre a evolução da educação do Brasil estão, por exemplo, em Pedagogia: Diálogo e Conflito, de 1985, escrito em parceria com de Moacir Gadotti e Sergio Guimarães.  Em 1986, o interlocutor é o professor norte-americano Ira Shor, que divide com ele a autoria do livro Ousadia – O Cotidiano do Professor. Publicado pela Unicef, em 1989, Educadores de Rua, uma Abordagem Crítica – Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua aborda a essencialidade do papel da educação para àqueles que vivem à margem, em meio à pobreza e excluídos na sociedade e sala de aula.

Sempre instigante e contestador, Paulo Freire analisou, em 1992, um modismo da época na obra Professor Sim. Tia Não: Carta a Quem Ousa Ensinar, valorizando e estimulando o profissional de ensino. Em 1993, em Política e Educação, reflete sobre as verdades da classe dominante e o cansaço existencial enquanto na coletânea de 11 textos, Que fazer – Teoria e prática em educação Popular, ele dialoga com o jornalista Adriano Nogueira sobre o papel da educação para a transformação social.

Uma espécie de livro de memórias, Cartas à Cristina – Reflexões sobre Minha Vida e Minha Práxis, de 1994, fala de si próprio como pensador e no mundo. Em À Sombra Desta Mangueira, escrito em 1995, ele atualiza as suas reflexões e faz crítica à política neoliberal e retoma a questão ideológica. O livro foi reeditado para celebrar o título de Patrono da Educação Brasileira. Em 1996 lançou Pedagogia da Autonomia, última obra escrita integralmente por ele, onde traz novas propostas, alicerçadas para a universalidade ética. Um ano depois, pouco antes de sua morte, acompanhou a elaboração de Pedagogia da Indignação, de autoria de sua esposa, Ana Maria, a partir de cartas escritas.

Atemporalidade

Seja a partir de suas ideias pessoais, da sua experiência de cidadão, professor e pesquisador, ou resultado da convivência com os alunos e outros autores, Paulo Freire escreveu sobre um tema comum, sempre expandindo as abordagens e estimulando os seus leitores. Não escreveu para a academia, mas para a sociedade. A partir dos títulos de seus livros podemos acompanhar a evolução e a maturidade de um homem que viveu além de seu tempo, e cujo saber não se esgotará nunca, pois pode ser aplicada a realidade atual vivida, acompanhando os novos rumos da sociedade.

O pensamento de Paulo Freire reflete o agora, a partir do passado aprendido  em lições de vida, mas vislumbram um futuro a ser construído. E como o futuro será sempre amanhã, o pensamento não envelhece e o método de ensino podem ser adaptadas e praticadas com o passar do tempo.

Boniteza – uma sociedade e construção

O livro A palavra boniteza na leitura de mundo de Paulo Freire foi organizado pela segunda esposa, Ana Maria, que reuniu amigos intelectuais para falar sobre o conceito cunhado por Paulo Freire. Inicialmente, a palavra buscava contextualizar o que o professor pensava sobre o amor na maturidade, porém o novo vocabulário se expandiu para uma visão de mundo. Junto com “esperançar”, a palavra da vez e política brasileira nos faz pensar e praticar dias melhores no Brasil.

Paulo Freire, na velhice, retomou uma promessa feita à sobrinha, para quem não escreveu no exílio. Universitária, ela queria entender o contexto brasileiro e as razões porque o tio havia deixado o Brasil. Mais tarde, ele materializou a dívida em livro, Cartas a Cristina, onde ele reafirma que “a pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa a acomodar-se e mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo”.

Vivo, ele não mudou o mundo, mas continua mudando as pessoas que leem os seus livros e se identificam com a sua história de vida. Pois, é impossível continuar sendo o mesmo indivíduo de antes após ler o professor amoroso, que viveu movido pela esperança e sempre lutou por um mundo melhor. Mesmo quando teve de esperar, agiu…

Para perpetuar a indagação, a esperança na transformação, Paulo Freire ajudou a criar, em 1981, seis anos antes da sua morte, o Instituto que leva o seu nome. Como está publicado no site do Instituto Paulo Freire, ele desejava “reunir pessoas e instituições que, movidas pelos mesmos sonhos de uma educação humanizadora e transformadora, pudessem aprofundar suas reflexões, melhorar suas práticas e se fortalecer na luta pela construção de “um outro mundo possível”.

O IPT é mantenedor da Editora e Livraria do Instituto, além da Universitas Paulo Freire, o Centro de Referência Paulo Freire e a Casa da Cidadania Plenetária. O IPT reafirma, fortalece e reinventa o legado do mestre.

Paulo Freire divulgou o nome do Brasil como poucos intelectuais o fizeram. Ele amou o país como poucos cidadãos brasileiros souberam amar, mas nem  por isso deixou de criticar, de fomentar a mudança, de gerar a conscientização. Por isso, foi banido no passado, recebido de volta de braços abertos e agora tem novamente a sua memória insultada.

O que temem os que menosprezam os saberes de Paulo Freire? Aqueles que não aprenderam as suas lições? O atual governo não honra o Patrono da Educação Brasileira e passa o vexame internacional de ser proibido pela Justiça de praticar atos institucionais contra a sua memória.

Se o analfabetismo persiste no Brasil é porque as escolhas políticas da classe dominante insistem na exclusão social. A ausência de educação formal e emancipadora perpetuam o abismo cultural, econômico e política que interessa a alguns em detrimento de poucos. Paulo Freire disse, em vida, que “gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas e as vidas”. Um sujeito que pregava a sustentabilidade muito antes de o neoliberalismo preterir os homens.

O legado de Paulo Freire move gerações, pois ideias não morrem jamais.

Paulo Freire vive em sua obra. Paulo Freire vive em cada um dos seus leitores. Paulo Freire vive em mim. Viva Paulo Freire!

(19/10/1921 – 2/5/1997)


[1] A Sombra Desta Mangueira

 


 


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, atropela o bom-senso e mostra para o que veio. Herdeiro da política que assolou São Pauloignorância daquele que o criou: o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A mudança do nome da estação do metrô da cidade de São Paulo remontaria à ignorância ou o prefeito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos)

sábado, 11 de março de 2023

 

Ricardo tem sede de justiça

 Tá lá um homem espancado estendido no chão

- A intolerância do trabalhador contra o brasileiro   sem nada

 Cena real da manhã de sábado, 11 de março. *

 Na capital mais excludente do Brasil, o sem teto   Ricardo agoniza na calçada, depois de  ser espancado  e ter desmaiado de dor. 

 O cenário é a Rua São João,   região central de São Paulo, próximo ao comércio popular oficial e informal. A polícia (Guarda Civil   Metropolitana) chega, acorda a vítima e pergunta o que aconteceu. Aos poucos, o homem se levanta e   conta ter sido maltratado.

Longa cabeleira e barbas grisalhas, ele está bem vestido: calça jeans, uma camiseta preta enfeitada coma uma rosa vermelha na haste verde, bordada na altura do peito, e chinelos de dedo. Podia ser um transeunte qualquer. Ele (aparentemente) está limpo, mas pode ter tomado uma birita para aguentar mais um dia...

Com pouco menos de 50 anos, o rosto sem rugas e os dentes em bom estado, aparenta ser mais jovem. Talvez, a idade que Cristo teria quando for humilhado, espancado e assassinado para zerar os pecados do mundo.

Em entrevista à TiViu, a televisão da PopRua, o homem conta que outro homem, mais jovem do que ele, pouco mais de 20 anos, chegou correndo e o agrediu. Ao pedir um copo d’água e foi acusado de tentar roubar uma cadeira, que caiu estava fixa, mas caiu na confusão.

“Ele gritou para eu sumir dali. Como eu não consegui correr, porque não consigo, me joguei no chão. Aí ele chutou a minha boca, a minha cabeça e me bateu com a barra de ferro. Eu desmaiei e ele voltou para o trabalho.”, contou.

Após a confusão as versões tomam os seus lados.

“Ninguém viu o que aconteceu...”, diz um. “Todo mundo viu”, retruca Ricardo.

 Os colegas do agressor se unem para defender a versão que, segundo eles, justificaria o maltrato: ele quis roubar uma cadeira. Alguns cobrem o rosto, e se unem na retórica: ninguém deu  porrada nele, ele caiu...

O nome da lanchonete parece justificar o ocorrido. Estaria o "dono do mundo" dizendo para matar ou invés de servir a bebida? Quando excluir, agredir seria o correto a fazer? Um direito de uns contra o outro?

A pergunta que fica: por que Ricardo roubaria uma cadeira, andarilho que é?

Jesus Cristo teria de morrer de novo para perdoar os pecados dos intolerantes, que negam água para um ser humano numa cidade onde quase 50 mil pessoas sobrevivem em situação de rua, sem comida, sem afeto, sem solidariedade.

“...Me dá um copo d’água, tenho cede. E esta sede pode me matar...”

                                                                                                 #GilbertoGil 


*Com reportagem e fotografia de Sebastião Nicomedes de Oliveira. artivista

Nota dos autores:

Ricardo se tratou sozinho. Foi até um bebedouro na esquina, colocado para atender à População em Situação de Rua e lavou o rosto. Cuspiu o sangue e seguiu a vida...



























Foto: Tião Nicomedes

quinta-feira, 9 de março de 2023

A luta coletiva no #8M

8M é luta comum

Ainda impactada com a força vivenciada na caminhada do Dia Internacional de Luta das Mulheres, em São Paulo, e testemunhada pelas mídias sociais no Brasil, América Latina e Europa, orgulha-me o caráter coletivo das reivindicações. A mulher se manifesta pela "energia comum".

Uma lida diversa nos move na construção de uma sociedade onde a equidade seja a palavra a ser praticada. Inspira-me, a cada ano, ver as pautas somadas: é quando os coletivos se unem e reorganizam os próximos os passos.

Como define a frase da Marcha Mundial das Mulheres que, orgulhosamente, empunhei este ano: Marchamos em Solidariedade aos Povos e Mulheres EM LUTA! 

É exatamente isso. Na caminhada feminina não podemos subtrair todes que, direta ou indiretamente, estão inseridos na jornada da vida.

Caminhamos, e cantamos, e dançando gritamos pelos direitos da mulher em todas as instâncias: no trabalho, na saúde, na educação, na sexualidade, na identidade, na diversidade. Anunciamos que defenderemos a moradia popular que dignifica, o direito ao aborto que liberta, o fim da violência contra a mulher que mantém a vida, a dignidade menstrual, a mobilidade da mulher migrante e com deficiência.

As demandas são tantas! Mas, também foi um dia de libertação. 

Há seis anos uma mulher foi o símbolo da violência política e impedida de exercer o cargo que lhe foi conferido pelo voto. Depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff todas fomos vitimadas pela misoginia que se instalou no Brasil. Digo, todas, referindo-me ao coletivo. É claro que algumas mulheres ainda não entenderam que a teia de direitos é inclusiva. Nela não cabe usufruir individualmente das benesses quando no poder: #semanistia

Emociona-me, particularmente, nas manifestações de rua, a diversidade explicitada nos rostos e corpos: as mulheres idosas, principalmente àquelas que fazem têm na luta a sobrevivência individual e familiar; as crianças que acompanham suas mães e, assim, assimilam o mundo de idéias e ideais; as pessoas transgêneros que provam que a vida é uma escolha; os diferentes biotipos brasileiros, os homens que dignificam as suas mulheres ao acompanhá-las em suas reivindicações.

Não é fácil escapar da rotina que nos pesa nos ombros, largar as tarefas e ir para as ruas. Principalmente debaixo do temporal que caiu na cidade - chuva de vento - que nos assustou, mas não impediu o encontro, às 17h. 

Cerca de hora e meia depois o arco-íris coloriu o vão-livre do Masp, provando que o Universo conspira a favor. Depois choveu de novo, lavando a nossa alma!

Cada mulher representou aquelas que não puderam comparecer. Donas de casa, estudantes, trabalhadoras. Nossa luta é anticolonialista, antipaternalista, anticapitalista, antirracista, antilgbtqia+transfobica. Contra o assédio em todas as suas dimensões, pela vida e dignidade da mulher.

Como define uma amiga querida, ativista de todas as causas dos Direitos Humanos e feministas:

"Nós mulheres, gestamos."

O resto é apropriação indevida. 

Viva o #8M

Foto da autora


sábado, 4 de março de 2023

Juntando a fome com a vontade de comer

Foto: Adriana do Amaral

Da oferta à demanda, da oportunidade à fidelidade.

Gente. Quanto mais alguns me decepcionam outros me dão alegria de viver. Principalmente, aqueles com quem eu cruzo no caminho. Eles me ensinam tanto!

Para mim, interessa-me demasiado a inteligência, resiliência e criatividade humanas. Gosto, principalmente, de ouvir relatos e histórias de vida. É quando eu sinto a humanidade no ser.

Caminhando pela Avenida Paulista... Vi, passei e voltei. Não acreditei nos meus olhos e fui conferir: comida pronta vendida na banca de revista. 

É isso mesmo:  parafraseando Caetano, se não dá para ler tanta notícia, refeições para que te quero. E como queremos "comida para quem precisa", como eu cantava com Titãs nos anos 1980.

Comida caseira, pronta, com variedade e embalada para comer. Sem burocracia. Aceita-se vale-refeição, dinheiro, cartão e PIX. Dezesseis reais com R$1 adicional para o refrigerante ou R$ 15 sem a bebida. Lanches e salgados custam respectivamente R$8 e 6.

A novidade foi muito bem recebida e está sendo bem-sucedida na Avenida Paulista. Mas, como há trabalhador em toda capital, há outros dois pontos de venda: no centro da cidade, Largo São Bento, e na zona norte, em Santana.  Tem ainda a opção de lanche,  já embalado, para quem tem pressa, gosta e tem fome de fast-food.

As refeições são feitas no dia e, pouco antes do meio-dia, são oferecidas pelo menos seis opções.  Do tradicional arroz com feijão com carne ou ave, massa, pratos temáticos etc. Feitas por um verdadeiro "chef", Edivan, que, após um acidente laboral, teve de se aposentar do restaurante famoso, mas não pôde dar ao luxo de parar de trabalhar. 

Ao lado do filho, juntou-se o talento com a necessidade de aumentar a renda. Raphael, formado em Gestão de Comercial, cuida da estrutura e da comércio no ponto de venda estratégico. Ele abriu mão do trabalho com carteira assinada para ganhar mais e garantir um horário mais flexível. Uma opção de vida que permitiu o retorno do pai ao mercado.

São cerca de 300 refeições dia, com clientela fixa. Elas alimentam, com dignidade, trabalhadores dos prédios de edifícios, que não têm tempo nem dinheiro suficiente para frequentar as opções do local, onerosas.  Muitos trabalham no segmento de prestação de serviços em empresas terceirizadas e telemarketing, que dispõe de marmita sem ter o trabalho de prepará-las.

E como ninguém é autossuficiente nesse mundo, pai e filho contam com o apoio do amigo da banca, que permite a coexistência de negócios que não concorrem entre si. Tudo com licença da prefeitura e pagamento dos devidos impostos.

 






#MarielleFranco nos ensina como enfrentar a realidade

  Fotos: #InstitutoMarielleFranco Confesso que caíram lágrimas dos meus olhos, uma sensação estranha de alívio... porém de tristeza.  O dia ...